Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 31, 2009

Drogas O desafio do crack

Uma droga brutal

Assassinato de jovem no Rio expõe o drama do crack,
que ainda não tem a devida atenção das autoridades de saúde


Ronaldo Soares e Silvia Rogar

Fotos Álbum de família, divulgação e Reprodução Ag. O Globo

DEGRADAÇÃO
Bruno Kligierman, em dois momentos: temporariamente livre
da droga e arrasado pelo crack, que o fez matar Bárbara


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O carioca Bruno Kligierman, de 26 anos, começou a beber quando tinha 14. Pouco depois, largou os estudos. As bebedeiras se alternaram com mergulhos nas drogas, como maconha, ácido, cocaína e, mais recentemente, crack. Bruno chegou a virar mendigo. O desfecho trágico dessa trajetória deu-se na manhã de 24 de outubro. Sob efeito de crack, ele estrangulou a estudante Bárbara Calazans, de 18 anos, a quem chamava de "meu anjo da guarda". A notícia chegou ao pai de Bruno, o produtor cultural Luiz Fernando Prôa, por um telefonema do próprio filho. Prôa chamou a polícia e rumou para o local do crime – o apartamento do rapaz, no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Bruno está preso. Pode pegar até vinte anos de cadeia por homicídio ou cumprir pena no manicômio judiciário, se comprovar sua dependência química. "Ele foi seu próprio carcereiro", resume o pai.

A história de Bruno tem contornos próprios, como a de qualquer pessoa. Foi abandonado pela mãe quando tinha apenas 2 anos e passou mais de vinte anos afastado dela. Quando eles retomaram contato, neste ano, ela estava com aids e morreu menos de um mês depois. Mas, para além do sofrimento que pode tê-lo levado ao vício, e da dor que provocou agora ao seu redor, existe uma tragédia social que ainda não é objeto da devida preocupação por parte das autoridades de saúde. O crack é uma droga especialmente perigosa. Provoca acelerada degradação física e mental e causa dependência rapidamente. Com o uso regular, vem a paranoia, a sensação de estar sob constante ameaça. A reação a esse quadro é violenta. O crack brutaliza. Põe em risco quem se vicia e, frequentemente, as pessoas que estão à sua volta. Por isso, as famílias que enfrentam esse drama sofrem agudamente com a precariedade da rede pública de atendimento, onde é difícil conseguir vaga para internação e são raras as unidades ambulatoriais pre-para-das para lidar com viciados nessa droga.

O desafio é mundial. Na Inglaterra, que tem programas bem-sucedidos no atendimento a dependentes de heroína e outras drogas pesadas, os resultados das políticas públicas voltadas para o crack são modestos. No Brasil, o atendimento à saúde mental, que já tinha problemas, ficou ainda mais caótico com a enxurrada de vítimas de crack. A epidemia se alastrou num momento de mudança na política de saúde mental no país. Desde 2001, com a aprovação da Lei nº 10216, a internação deixou de ser encarada como pilar do tratamento de distúrbios psi-quiátricos. A ideia é internar apenas pacientes com quadro agudo, que precisam de cuidados especiais e atenção constante por determinado período. E, superada essa fase, transferi-los para uma rede ambulatorial externa.

Faz todo o sentido. No entanto, em decorrência dessa nova política, fecharam-se 16 000 leitos psiquiátricos – mais de 30% do total. E o sistema ambulatorial ainda não engrenou. O número de unidades destinadas a dependentes de álcool e drogas é ínfimo – apenas 200, de um total de quase 1 400. Com escassas possibilidades de internação ou tratamento ambulatorial, os pacientes ficaram entregues à própria sorte. "A simples eliminação de leitos de internação deixou um rombo na rede de atendimento", diz o psiquiatra Mauro Aranha, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. O efeito desse colapso é que os dependentes químicos acabam empurrados para centros de reabilitação que, em muitos casos, não têm nem autorização para funcionar. O alto preço da internação leva famílias a se desfazer de seus bens para custear o tratamento. Em geral, os planos de saúde cobrem apenas quinze dias de internação.

Subproduto da cocaína em forma de pedra – que estala quando é queimada, daí o nome –, o crack chegou ao Brasil na década de 90. Durante um bom tempo, ficou restrito a indigentes que perambulavam pelo centro de São Paulo. Hoje, a situação é bem diferente. As pedras se espalharam pelo território e por todas as classes sociais. Ainda não há estatísticas – o Ministério da Saúde está concluindo o primeiro estudo voltado especificamente para o crack. Mas o aumento de dependentes em consultórios psiquiátricos e em clínicas de reabilitação mostra que a epidemia se alastra rapidamente. No Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, até dois anos atrás não havia usuários de crack. Hoje, eles representam quase 30% da demanda. Para enfrentar a epidemia, o Ministério da Saúde anunciou investimentos de 117 milhões até o ano que vem em melhorias na rede de saúde mental. Espera-se que a ajuda chegue a tempo.

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