Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 31, 2009

Davos O novo fórum social

O FÓRUM SOCIAL DE DAVOS

O espírito do velho Karl Marx deveria ter ido a Belém
cantar para Che Guevara junto com Chávez, mas
preferiu a Suíça, onde o capitalismo foi mais atacado

Montagem sobre foto Virginia Mayo/AP e Alfredo Dagli Orti/Corbis/Latinstock

UM ESPECTRO Marx aparece nesta montagem pairando sobre debatedores
em Davos, onde o "modelo" e o "sistema" foram os vilões

Diz a lenda que uma vez por ano Karl Marx recebe autorização para abandonar sua tumba no cemitério de Highgate, em Londres, onde ele desde 1883 descansa – se é que comunista descansa –, para participar do Fórum Social. Neste ano seu destino natural seria Belém, no estado brasileiro do Pará. Ele até chegou a dar as caras, mas por ali não encontrou nada muito parecido com o que esperava das classes trabalhadoras. Viu alguns índios e seus líderes invocando entidades incorpóreas que regeriam a vida em um continente chamado Abya Yala, como é politicamente correto se referir na língua indígena kuna ao que conhecemos como América Latina. Pensou em ficar um pouco mais quando o presidente brasileiro Lula chegou ao microfone. Finalmente, alguém mais sério. "Deus escreve certo por linhas tortas, porque o deus mercado quebrou", decretou Lula.

Foi a gota d’água para o velho Karl. Lula também estava mais para fenomenologia do espírito do que para o materialismo histórico. Pegou as malas mas, antes de voltar a Highgate, decidiu ver o que seus tradicionais detratores, os altos dirigentes das democracias capitalistas ocidentais, líderes de empresas e seus agregados nas artes e na academia, estavam discutindo na suíça Davos, na versão 2009 do Fórum Econômico Mundial, sob a temática geral "Dando forma ao mundo pós-crise". Ali, sim, tinha gente articulada, brandindo dados e pondo a culpa da crise econômica no "sistema capitalista". A socialização das falhas que levaram à atual crise financeira mundial – uma das mais, se não a mais, severas e complexas da história contemporânea – foi a tônica em Davos. Ninguém pode ser apontado como culpado. Nem George W. Bush nem Alan Greenspan, o mago do banco central americano que se transformou em bruxo ao reconhecer, candidamente, que ficou "chocado" ao descobrir que os bancos estavam emprestando fortunas a quem assumidamente não podia nem pretendia pagar. Nada de nomes. O culpado é o sistema. Um espectro ronda a Europa e o mundo. Trabalhadores do mundo, unam-se. Tudo que vocês têm a perder é o crédito. Mas, se ele secou para todos, empresas, governos e os próprios bancos, qual é o grande problema? Resumiu Bill Gates, o terceiro homem mais rico do mundo, mais uma vez estrela em Davos: "Acho que nunca acharemos um culpado, um vilão para quem possamos apontar e dizer: Aha... ele fez toda a lambança".

Harry Truman, o 33º presidente dos Estados Unidos, dizia que para um estadista não existem novidades, "mas capítulos da história dos grandes homens que ele não leu". Pois o que mais faltou em Davos foram justamente coragem e lucidez para dar nome aos bois, dizer quem errou, por que errou e como evitar que esse mesmo tipo de gente volte a ter poder de decisão. De modo geral, os conferencistas e panelistas adotaram a visão tão cara aos marxistas de ver as falhas incontornáveis sistêmicas do "modelo" e do "mercado". Teria sido bem mais interessante se cada participante, para obter inscrição em Davos, fosse obrigado a escrever um ensaio sobre "O que EU fiz de errado que ajudou a nos colocar nessa encrenca". Antes de voltar para casa, seria uma boa ideia cobrar deles também um depoimento de despedida com o tema "O que EU farei para que a crise seja menos cruel do que se anuncia e não mais se repita". Como o EU sumiu de Davos, a visão sistêmica e coletivista do determinismo histórico marxista se instalou, mesmo que pouca gente tenha se dado conta disso.

Alguém poderia ter tido a lucidez de lembrar duas coisas que adiantariam muito os debates. Primeiro, a crise atual não foi prevista por Marx. Nem em sonho ele poderia ter imaginado o estágio de desenvolvimento e complexidade que os mecanismos de crédito atingiriam nestes primeiros anos do século XXI. Marx achava que o capitalismo encontraria seu fim ao cabo de cada vez mais fortes crises recessivas clássicas – aquelas ocasionadas por excesso de produção e falta de demanda, com a crescente insatisfação dos proletários produzindo a energia revolucionária para que se passasse de forma violenta ao comunismo. Nenhuma dessas condições está presente na atual crise. O que se observa é o estouro de uma bolha financeira que atingiu em primeiro lugar os ricos e a classe média investidora, com a evaporação de 10 trilhões de dólares em riqueza das famílias só nos Estados Unidos. Segundo, as contradições e injustiças que embalaram politicamente as teorias de Karl Marx na Europa da segunda metade do século XIX e por quase todo o século XX praticamente não existem mais nos países avançados e foram minoradas em quase todo o mundo. O capitalismo deu condições extraordinárias de habitação, saúde, conforto e aposentadoria a milhões de habitantes de países onde se instalou. Só nos anos que antecederam a crise atual, tirou da miséria centenas de milhões de famílias no Brasil, China e Índia. É esse progresso que está sendo colocado em risco pela corrente de destruição de riqueza deflagrada pela crise financeira. Foram necessários grandes homens e grandes mulheres para chegar até esse estágio de progresso. É de indivíduos formidáveis, e não de críticas ao "sistema capitalista" emanadas do cemitério de Highgate, que virá a solução para impedir que a crise destrua tudo o que se conquistou e para avançar ainda mais.

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