Especialista em finanças públicas afirma que o governo
promoveu um inchaço estatal na fase de bonança e
agora terá menos poder de manobra para reagir à crise
Giuliano Guandalini
Ana Araujo | "O peso do governo terá de encolher, e não aumentar, para que o ajuste no setor privado seja menos severo" |
Governos ao redor do planeta aumentam os gastos públicos para combater a pior crise financeira em oitenta anos. O Brasil deveria fazer o mesmo? Não, diz um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, o economista Raul Velloso, de 63 anos, ex-secretário adjunto de Planejamento e Ph.D. pela Universidade Yale, nos Estados Unidos. Para Velloso, o custo da máquina pública no Brasil já passou da medida há muito tempo. Agora, segundo ele, a crise reduzirá a arrecadação de impostos, e o setor público terá de frear suas despesas na marra: "Durante muito tempo, os cidadãos engoliram pagar novos tributos para financiar os gastos. Isso acabou. Ao contrário da China, por exemplo, o Brasil vai ter de enfrentar ao mesmo tempo o déficit nas contas externas e a ameaça da inflação. Por isso não poderá aumentar os gastos para combater a desaceleração na economia".
O governo brasileiro vai elevar para 103 o total de adidos no exterior, com salário de até 37 000 reais. Também planeja admitir até 50 000 novos servidores. O que o senhor acha dessas contratações? Elas deveriam ser imediatamente suspensas, assim como deveriam ser renegociados todos os reajustes de servidores aprovados no fim do ano passado. Historicamente, em início de mandato, há restrição de contratações e de aumento salarial do funcionalismo. Com o passar do tempo, os governantes cedem às pressões políticas e aos lobbies dos sindicatos dos servidores. Os presidentes perdem a força, ficam menos austeros. Abrem as comportas. Essa é a regra. Mas agora as comportas se abriram demais. O governo perde a cada dia sua disposição de reduzir os custos da máquina pública.
"No início, os governantes restringem contratações. Com o tempo, cedem aos lobbies dos sindicatos. Perdem a força e abrem as comportas. Essa é a regra. Mas agora as comportas se abriram demais" |
Mas no mundo inteiro os governos decidiram aumentar os gastos públicos para combater a recessão econômica. Por que no Brasil o remédio deve ser o oposto? Porque, ao contrário de outros países, o Brasil precisa lidar com o déficit nas contas externas e com a inflação. Se os gastos públicos crescerem ainda mais neste momento de escassez de dólares, haverá um aprofundamento do saldo negativo nas transações do país com o exterior. Isso enfraqueceria o real, e a alta do dólar seria repassada para os preços, pressionando a inflação. Haveria também o risco de um aumento na taxa de juros, desestimulando os investimentos privados e o consumo.
Por que países como a China não enfrentam esse dilema? Lá a inflação deixou de preocupar, e os chineses não possuem déficit nas contas externas – há ainda sobra de dólares na economia deles. Aqui, o peso do governo terá de encolher, e não aumentar, para que o ajuste no setor privado seja menos severo – e para que não haja uma retração mais aguda dos investimentos. É isso que muitos parecem não ter compreendido. Aqui não sobra dinheiro público para investimentos. A máquina absorve praticamente tudo.
O governo argumenta que há falta de mão-de-obra em alguns departamentos, daí a necessidade das contratações. O senhor concorda? Reconheço a necessidade de trazer gente nova à administração pública. Mas por que não remanejar os funcionários antigos, muitas vezes ociosos? Por que um engenheiro ou um técnico de informática precisam ser exclusivos de determinada repartição ou setor? Deu-se prioridade aos aumentos generalizados, e não à eficiência. Todos os sindicatos dos servidores se aproveitaram para reivindicar aumento de salário no ano passado, com a recomposição dos planos de carreira de praticamente todo o funcionalismo. Veio uma farra de reajustes que vão custar mais de 20 bilhões de reais aos cofres públicos em 2009. Com a crise, é preciso enxugar a máquina pública, e não aumentá-la.
Se esse ajuste não for feito, quais serão as consequências? O Banco Central terá de aumentar os juros. Ou deixar a inflação correr solta. O resultado de mais inflação seriam juros ainda mais altos no futuro, e menos crescimento, por causa da queda nos investimentos privados. Portanto, o setor público terá de ajustar seus gastos inexoravelmente, por bem ou por mal. É melhor que o faça por bem. Chegou a hora de mudar a atitude em relação à gestão das contas públicas. A arrecadação, durante os anos de bonança, cresceu sempre mais do que o PIB (produto interno bruto, soma de todas as mercadorias e serviços produzidos por um país em um ano). O ápice desse processo foi em outubro do ano passado. Mas isso já faz parte da pré-história. Agora a arrecadação deixará de crescer.
O que precisa ser feito para controlar o inchaço dos gastos com o funcionalismo? Além da suspensão dos concursos e da renegociação do aumento de salários já programado para este ano, é emergencial que se aprove o projeto de lei que impõe um teto ao reajuste dos servidores. O mais curioso é que esse projeto foi proposto pelo próprio governo, no início de 2007, no lançamento do PAC (programa de Aceleração do Crescimento). Seu texto prevê um limite para o reajuste do funcionalismo, que seria dado pelo repasse da inflação medida pelo INPC mais 1,5%. Se essa lei já estivesse valendo, teria sido possível economizar 11 bilhões de reais em 2007. Esse projeto se perdeu, virou uma alma penada no Congresso. Ninguém sabe onde ele está. Justamente enquanto se postergava a votação dessa medida, todos os sindicatos dos servidores se aproveitaram para reivindicar o aumento de salários.
Como se dará o contágio da crise externa nas finanças públicas do país? Chegou ao fim, depois de seis anos, a bonança internacional, que havia incentivado o crescimento econômico brasileiro e o consequente aumento na arrecadação de tributos. O mundo mudou completamente de três meses para cá. O que valeu no Brasil até outubro virou pré-história. Antes, o governo conseguia ampliar seus gastos e ainda assim manter o superávit fiscal primário, porque a arrecadação tributária crescia ainda mais. Essa fartura, decorrente da bolha financeira, acabou. Agora vai surgir um novo mundo, o qual não sabemos ainda direito como será. Ocorrerá a reversão de muitos dos ventos favoráveis que empurravam o país e ajudavam o governo.
Que ventos deixaram de soprar a favor do país? O crédito externo secou. As empresas passaram a ter dificuldades para refinanciar suas dívidas em moeda estrangeira. Um exemplo foi a Petrobras, que precisou recorrer a credores locais, até mesmo à Caixa, porque não encontrou quem lhe emprestasse lá fora. Estima-se que haja 72 bilhões de dólares em débitos das companhias brasileiras que vencerão em 2009. De onde sairão esses dólares? Haverá uma disputa por recursos. O ingresso de capital dos investimentos estrangeiros também diminuirá. As multinacionais, com dificuldades em sua matriz, vão reduzir os projetos. As compras de empresas nacionais por grupos estrangeiros cessaram. Houve ainda fuga de investidores internacionais no mercado financeiro. O Brasil voltou a enfrentar um problema antigo, que imaginava extinto: a falta de dólares.
Como o governo deveria reagir a esse problema? Se eu fosse o presidente Lula, eu me mudaria para Washington para tentar atrair dólares do Tesouro americano ou de instituições multilaterais – o Banco Mundial e, quem sabe, até o Fundo Monetário Internacional – a fim de garantir que o ajuste do déficit externo não seja tão drástico. O drama é exatamente este: o sistema financeiro privado dos países ricos não vai poder ser fonte de financiamento exatamente porque é nele que a crise está enraizada. O governo americano, portanto, tornou-se praticamente a única fonte disponível de dólares.
Como, se o coração da crise está exatamente nos Estados Unidos? Não podemos nos esquecer de que, por serem os emissores do dólar, a moeda de curso internacional, o dinheiro mais aceito no mundo, os Estados Unidos recebem uma enxurrada de recursos de todo o planeta. Verifica-se agora uma versão ainda mais acentuada da chamada flight to safety (fuga para a segurança), comportamento esperado em qualquer turbulência. Posso fazer um paralelo com a crise do petróleo na década de 70. Naquela ocasião, o dinheiro estava com os países árabes. Eles depositavam os dólares adicionais que recebiam nos bancos americanos, e estes faziam a reciclagem para países co-mo o Brasil, importadores de petróleo. Agora, os dólares estão sobrando não nos bancos, mas no governo americano. Só ele poderá fazer essa reciclagem.
Uma vez passada a fase mais crítica, os ventos não podem voltar a inflar as velas do Brasil? Não na mesma intensidade. Esqueça. O setor bancário mundial está encolhendo. É o que se chama de desalavancagem. Os bancos internacionais emprestavam, em média, doze vezes o total de seus depósitos. A alavancagem era de doze, portanto. Estima-se que vá recuar para oito. A conclusão é que vai diminuir o fluxo de dólares na economia global. As grandes empresas brasileiras, que estão profundamente inseridas no mercado mundial, sentirão esse efeito. Para completar, houve redução no preço das matérias-primas (commodities) exportadas pelo Brasil, o que enxugou ainda mais a oferta interna de dólares. Por isso, não resta dúvida de que esse novo mundo será pior do que o anterior, o que exigirá um ajuste nas contas do governo.
O que pode ser feito a curto prazo, que independa de reformas profundas e difíceis, para travar o avanço na gastança pública? Os esforços precisam se concentrar nos itens de maior peso no orçamento do governo. As despesas de previdência, assistência social e funcionalismo representam 70% dos gastos do governo. É necessário conter o avanço desses gastos. Essa conta cresceu bastante por causa da política de conceder aumentos ao salário mínimo bem acima da inflação. Isso não pode acontecer. Os pagamentos ligados ao salário mínimo representam quase um quarto de todas as despesas do governo. É justo manter o poder de compra do salário mínimo, mas, na atual circunstância, não faz nenhum sentido conceder reajustes acima da inflação. O impacto nas contas públicas é devastador. Cada real de aumento no salário mínimo significa uma despesa extra superior a 200 milhões de reais ao ano.
"A carga tributária chegou ao limite. Não há como criar mais impostos sem que a sociedade reaja e se oponha. Durante muito tempo, os cidadãos engoliram pagar novos tributos. Isso acabou" |
O governo não poderia acomodar o aumento dos gastos e a queda na arrecadação valendo-se da criação de mais impostos? É improvável que consiga. Na última década, o total dos impostos pagos pelos brasileiros subiu de menos de 30% para quase 40% do PIB. É esse o tamanho da bicada do governo. Essa carga chegou ao limite. Não há como criar mais tributos ou alíquotas sem que a sociedade reaja e se oponha. Durante muito tempo, os cidadãos engoliram pagar novos tributos. Isso acabou. A derrota do governo em sua tentativa de prorrogar a CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira) comprovou a aversão da sociedade. Ninguém aceita mais. Isso não impede, obviamente, que a Receita Federal busque aumentar a arrecadação apertando a fiscalização.
Há uma década, os estados são obrigados a gastar menos do que arrecadam, por causa da Lei de Responsabilidade Fiscal. Que avaliação o senhor faz dessa lei? A Lei de Responsabilidade Fiscal, junto com a renegociação das dívidas dos estados, mostrou-se fundamental para equilibrar as contas do setor público. Os governos estaduais, até 1998, possuíam déficits em suas finanças. Aquela situação trazia uma incerteza muito grande sobre se a dívida pública sairia do controle e deixaria de ser paga. Essa fragilidade tornava o país vulnerável em meio a crises financeiras, porque, ao menor sinal de perigo, havia fuga de dólares. A questão é que os gastos do governo federal permanecem descontrolados. Ao contrário dos estados, a União pode aumentar suas despesas de custeio à larga, como tem feito, sem que haja nenhum impedimento. Chegou o momento de acabar com essa farra.
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