O Estado de S.Paulo - 02/09
Não é todo dia que os brasileiros que ainda não perderam inteiramente o interesse pela política têm a oportunidade de encontrar no noticiário um manual, claro como o sol, do funcionamento do sistema que entrelaça autoridades, parlamentares, candidatos e empresários em torno dos recursos - em todos os sentidos do termo - que o Estado, e ninguém mais do que este, pode proporcionar a tutti quanti. O melhor do manual é a descrição dos passos essenciais dessa ciranda, que se complementam admiravelmente. Em um dos movimentos, o político de alguma forma associado a um grupo de homens de negócio, ou que lhe deve favores, procura um órgão oficial para conseguir que sejam beneficiados numa determinada parceria da administração pública com agentes privados. No outro volteio, por iniciativa própria ou a pedido, a autoridade procura empresários do setor que comanda do outro lado do balcão para que contribuam para a campanha de um candidato.
Todos os envolvidos têm algo a ganhar e algo a temer. A autoridade receia cair futuramente em desgraça se não carrear dinheiro alheio para os cofres da tal candidatura. Carreando, espera, se ela vingar, que os seus esforços venham a ser devidamente reconhecidos. O mesmo se dá com os donos do dinheiro: recusando-se a contribuir, serão rotulados de ingratos - porque, afinal, já foram premiados em transações com a área pública -, prenúncio, a seu ver, de dificuldades até então não enfrentadas por suas empresas; fazendo a parte que lhes toca, é como se fizessem um investimento de risco mínimo e alto retorno. Com os políticos, a dialética dessa modalidade de custo-benefício é ainda mais evidente. Tendo sido eleitos com a mão em geral invisível do poder econômico, seria irracional do ponto de vista de suas ambições deixar de retribuir os favores recebidos. O sociólogo Fernando Henrique cunhou a expressão "anéis burocráticos" para retratar esses enlaces de recíproca conveniência à sombra do Estado e às expensas do contribuinte. Mas pode-se chamá-los simplesmente "toma lá dá cá".
Dois casos de livro didático vieram à luz nos jornais de quarta-feira passada. Um deles, nas citações do depoimento do ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) Luiz Antonio Pagot à CPI do Cachoeira. O apadrinhado do rei da soja e senador Blairo Maggi deixou a função em julho do ano passado, ao ser alcançado pela faxina da presidente Dilma Rousseff nos altos escalões do governo. Ele contou ter arrecadado cerca de R$ 6 milhões em doações legais de mais de 30 empresas detentoras de contratos com o Dnit para a candidatura Dilma Rousseff. Teria também intermediado financiamentos para as campanhas aos governos de Santa Catarina e Minas Gerais da atual ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, do PT, e do senador Hélio Costa, do PMDB. Os dois negam e Pagot confirma. Quem o procurou para ajudar Dilma foi o tesoureiro da campanha, o deputado petista por São Paulo, José de Filippi. Ele o orientou para deixar de lado as grandes empreiteiras, das quais outros se ocupariam, e se concentrasse nas de menor porte.
As confissões de Pagot, além de tirar da catalepsia a CPI do contraventor, nacionalizando o seu alcance até então concentrado no Centro-Oeste, parecem justificar o cínico dito de que, na política, deve prevalecer a presunção de culpa, salvo prova em contrário. Isso se aplica, evidentemente, ao deputado Henrique Eduardo Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte - o outro personagem da hora. O Estado revelou que o candidato a presidente da Câmara em 2013 fez lobby no Tribunal de Contas da União (TCU) para que o Consórcio Rodovia Capixaba ganhe a concessão por 25 anos da BR-101 entre o Espírito Santo e a Bahia - um contrato da ordem de R$ 7 bilhões. "Fiz um favor pessoal a um empresário meu amigo", alega o parlamentar, como se a gentileza não configurasse tráfico de influência. O TCU, afinal, é um órgão do Legislativo. Na realidade, é pior: o consórcio cujos interesses foram abraçados por Alves é ligado a um grupo do qual ele é sócio no controle da TV Cabugi de Natal. Pagot, um tanto tardiamente, pelo menos admitiu na CPI ter sido "antiético".