O Estado de S.Paulo - 05/06/11
Reinar, mas não governar. Essa é a ameaça que paira sobre a cabeça de mandatários que não conseguem transformar o capital eleitoral obtido no pleito em capital político. Em termos práticos, tal ameaça significa enfrentar resistências da própria base aliada e obstáculos na passagem de interesses do Poder Executivo pelas Casas congressuais.
O passado registra o caso de Fernando Collor de Mello. Sem capital político, foi empurrado para fora da Presidência da República por um impeachment. De lá para cá, as coisas mudaram. Os presidentes trataram de azeitar a máquina da articulação política. Mesmo assim, a agenda do Executivo não é imune à derrota, conforme se viu na recente aprovação do Código Florestal pela Câmara dos Deputados. A vitória do grupo ruralista sobre a frente ambientalista aponta para a constatação de que o chamado "presidencialismo de coalizão" ainda é, entre nós, uma figura ficcional. E a explicação está na forma de relacionamento do Executivo com os partidos que lhe dão sustentação. Forma considerada ortodoxa, unilateral, sem reciprocidade. O maior partido da base, o PMDB, por meio de seu líder na Câmara, deputado Henrique Alves (RN), põe o dedo na ferida quando faz uma leitura da gramática do poder: ser governo é uma coisa, estar no governo é outra.
A diferença entre ser e estar, ao que se interpreta, conduz aos fundamentos do "presidencialismo de coalizão", nos termos descritos pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, que pressupõem três momentos: a constituição pelos partidos de uma aliança eleitoral e sua união em torno de um programa mínimo; a formação do governo, a partir do preenchimento de cargos e compromissos com a plataforma política; e a transformação da aliança inicial em coalizão governativa. Ser governo, portanto, é assumir responsabilidades nesses três momentos. Sob essa perspectiva, o governo deveria amalgamar as posições programáticas dos partidos, contemplando-os na operação administrativa de acordo com a sua respectiva densidade política no Congresso Nacional e observando a identidade e as vocações de cada um. Não é, porém, o que se vê na vida administrativa. A disparidade no atendimento das demandas partidárias abre contrariedades e promove emboscadas.
As disputas por espaços se acirram sob o leque do fisiologismo, mazela histórica de nossa cultura política. Se o PMDB, por exemplo, passa a imagem de federação de partidos e de comandos regionais, com presença marcante em todos os ciclos governamentais após a ditadura de 1964, o PT luta para ser o dono da redoma, só admitindo a fórceps o compartilhamento do poder. Não arreda mão do lema "nós aqui e eles lá". Em outros termos, o Partido dos Trabalhadores quer dizer que é governo, enquanto os aliados estão apenas (de passagem) no governo. Ou seja, são convidados circunstanciais. Esse é o busílis. Estar no governo, eis a noção, restringe-se à simples ocupação de cargos sem competência dos ocupantes para interferir em linhas programáticas. Tal visão gera indignação de elos da corrente governista. O resultado é o embate como o que se viu em torno do Código Florestal. Ao deixar de contemplar posições dos participantes da base, o Executivo despreza a modelagem do "presidencialismo de coalizão". Qual a razão para tanta autossuficiência? Resposta: os poderes do hiperpresidencialismo.
O Poder Executivo, como se sabe, ganhou força com a Constituição federal de 1988, que dotou o governo de extraordinário instrumento legiferante (a medida provisória). Além deste, outros meios têm expandido o cacife presidencial: a adoção do regime de urgência na tramitação de projetos de lei, o mecanismo de votação simbólica de lei pelos líderes partidários, a legislação tributária centralizadora e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Com essa armação, o Palácio do Planalto passou a enquadrar as políticas do Estado em duas bandas: uma com capacidade decisória sobre metas de câmbio, política de juros, cujos efeitos se fazem sentir nas políticas de emprego e renda; a outra sem poder decisório central, repartida entre os apoiadores. Não por acaso, floresce no País um autoritarismo civil sem precedentes. Tão forte é a sua capacidade de influir na orquestra legislativa que uma nota dissonante, como a aprovação do Código Florestal, acaba quebrando o diapasão do Palácio do Planalto. O barão de Montesquieu (quem se lembra dele?), com seu sistema de pesos e contrapesos, fica apenas no registro necrológico.
Relegando a plano secundário as funções governativas e legislativas dos partidos, o Executivo vê-se apertado ao se defrontar com a possibilidade de ver alterado o fluxo das medidas provisórias, como se cogita. Os intermitentes sustos ao longo dos ciclos legislativos provam que os comandos das instâncias governativas precisam de ajustes. A começar pelo ajuste da gramática dos verbos ser e estar. Os integrantes da plataforma governista pleiteiam ser governo, participar da elaboração das regras do jogo, não apenas nele entrar como coadjuvantes. A tarefa é complexa. Exige realinhamento de ideário, desafio que pressupõe entendimento e plena aceitação do escopo do "presidencialismo de coalizão". Sem essa condição, o que teremos é colisão com o presidencialismo.
É evidente que a aprendizagem na cartilha dessa feição presidencialista demandará compromisso dos entes partidários com valores éticos e princípios morais, sem os quais os domínios administrativos se tornarão feudos de caciques e interesseiros. Posições mais transparentes, articulação das forças sociais para participar da formulação das políticas e calendário de implementação dos programas ajudariam a compor uma identidade governativa homogênea. Nessa direção, deveriam ser acionados para atuar com firmeza os órgãos de controle, como a Comissão de Ética do serviço público, a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República. Parcela considerável da lama fisiológica seria extirpada da arquitetura institucional. E a República seria mais asséptica.