O Globo - 10/02/2011
O grande problema para os Estados Unidos na concorrência que o Brasil abriu ainda no governo Fernando Henrique para a compra de caças para a Aeronáutica, e que já entra no terceiro governo sem uma definição, além de uma eventual posição antagônica da nossa política externa, sempre foi a transferência de tecnologia. Ou melhor, a crença entre os militares brasileiros de que os EUA não transferem tecnologia nos acordos comerciais e dificultam a relação do Brasil com terceiros países.
Houve problemas com os militares brasileiros nos últimos 30 anos, especialmente com a Aeronáutica, que teve projetos seus dificultados por embargos dos americanos a desenvolvimentos tecnológicos ligados a mísseis e satélites.
O veto americano à venda de aviões Super Tucanos, fabricados pela Embraer, à Venezuela, é exemplo da difícil relação com os EUA na área militar. Os americanos aplicaram o veto valendo- se de que o sistema de radar dos Super Tucanos é fabricado pelos EUA e, portanto, a venda a terceiros países depende de autorização de Washington.
Para levantar essas objeções, a Boeing ofereceu à Embraer, no início de 2010, fato relatado aqui na coluna na ocasião, a participação no programa de desenvolvimento do Global Super Hornet, o que significava uma mudança de atitude inédita no governo americano em matéria de transferência de tecnologia. Também o Congresso americano, que tem que aprovar programas de transferência de tecnologia, já dera autorização em setembro de 2009, e essa é, segundo informações de Brasília, uma das questões pendentes. O governo brasileiro quer ter garantia de que, além do Departamento de Estado, o Congresso não colocará obstáculos à transferência de tecnologia.
Há um trecho em uma carta da secretária Hillary Clinton, enviada no ano passado, em que ela garante que o Departamento de Estado apoia integralmente "a transferência de toda informação relevante e a tecnologia necessária", o que é, no entanto, interpretado como uma limitação a essa transferência. Os EUA definiriam, de acordo com seus interesses, o que seria tecnologia "relevante e necessária". Até a multa de 5% em caso de não cumprimento do acordo é vista por setores do governo não como demonstração de boa-fé, mas de dúvidas da Boeing sobre o cumprimento dos compromissos assumidos.
A proposta da Boeing, que o governo brasileiro na gestão Lula não havia aceitado, é transformar a indústria brasileira "no único fornecedor de peças críticas para a linha de produção do Super Hornet para o Brasil e todas as aeronaves da Marinha dos Estados Unidos". A empresa se compromete também a entregar "os primeiros pacotes de dados de engenharia" junto com a assinatura do contrato. Seria criada uma estrutura de gerenciamento para a transferência de tecnologia da Boeing para o Brasil.
A Boeing se comprometeu a financiar cerca de 100 mil homens/ hora para a Embraer participar do programa internacional de desenvolvimento do Global Super Hornet. Caberá ao presidente dos EUA, Barack Obama, que falara três vezes com Lula apoiando a proposta americana, convencer o governo Dilma da segurança da proposta, depois que novos sinais do Planalto indicam que, em vez dos Rafale da França, a nova administração pode optar pelos Super Hornet americanos.
O professor Expedito Carlos Stephani Bastos, coordenador dos estudos de defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora, sempre foi a favor de uma parceria na área militar com os EUA, "até porque historicamente os aviões americanos foram os que duraram mais em termos de uso e operações ao longo de toda a nossa história desde a aviação militar (Exército e Marinha) que foram unificadas para formarem a Força Aérea Brasileira em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial".
Ele considera o F-18 da Boeing o melhor dos três que disputam a licitação (junto com os Rafale da França e os Gripen suecos, que são os preferidos da Aeronáutica, mas são ainda projetos), o mais próximo de nossa realidade, "pois é um avião moderno, testado em combate, com mais de 450 unidades produzidas e exportadas para vários países".
Estando ainda em produção pelo menos até 2017, diz Expedito Bastos, sem dúvida é o que terá grande facilidade em peças de reposição, pois até mesmo quando estes forem desativados por seus operadores, poderemos, ao longo dos próximos 30 anos, o tempo de vida de um caça por aqui, ter facilidade em adquirir unidades de reposição para eventuais perdas que tivermos durante sua operação.
Segundo ele, nossa experiência com equipamentos franceses não foi das melhores, desde 1922, quando contratamos uma Missão Militar de Instrução. "Usamos aviões Mirage IIIC por 35 anos e não foi possível revitalizá- los, o mesmo ocorrerá em alguns anos com os 12 Mirage 2000C adquiridos em 2005".
Com equipamentos americanos, Bastos diz que basta constatar que os F-5E adquiridos na segunda metade dos anos 70 ainda se encontram em operação, sendo a espinha dorsal da FAB após a modernização feita pela Embraer a partir de 2005.
Caso o Super Hornet venha a ser escolhido, o especialista da Universidade de Juiz de Fora diz que a aviação naval brasileira poderia ser equipada com o F/A-18C, que pode operar a partir do porta-aviões São Paulo, "o que nos daria grande ganho estratégico regional a um custo acessível à nossa realidade, além de poder ter ganho logístico enorme". Com relação à transferência de tecnologia propriamente dita, Bastos considera que "nenhum país fará totalmente, porque nossa capacidade de absorção é limitada".
Nessa questão, a capacidade de negociação do comprador é muito importante, segundo ele. "Num país onde o orçamento de defesa ainda é uma obra de ficção, precisamos agir racionalmente e pragmaticamente, de nada nos adiantará comprar algo extremamente sofisticado, caro de se operar e manter, com grande limitação de seu uso em razão de custos, principalmente os relacionados à hora de voo, só para falar que temos e exibir em festas nacionais".
Ele cita como exemplo interessante a tecnologia de usinagem química, seus métodos, técnicas e processos, cujo controle permitiu à Embraer na década de 1980 fabricar o EMB- 121 Xingu e o EMB-120 Brasília, líder mundial na sua categoria, e foi transferida pela companhia norte-americana Sikorsky Aircraft, por solicitação do Ministério da Aeronáutica, como contrapartida de uma compra.
Na coluna de ontem, por um engano, saiu que a moeda brasileira é "a mais desvalorizada do mundo", quando o correto é "a mais valorizada", como está dito em trecho anterior.