Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 18, 2010

O clarão na noite Miriam Leitão

O GLOBO - 18/09/10



O fogo chegou de repente. Veio subindo o morro com avidez. Queimou o eucaliptal de um vizinho, avançou estalante sobre a capoeira do outro vizinho e, no meio da noite, se aproximou de um pedaço de mata no qual tenho investido emoções, recursos, tempo e esperança. Foi uma longa batalha noturna de vários braços de amigos, vizinhos e funcionários.

Capoeira, para quem não está acostumado com termos rurais, é uma quase mata, a formação primeira do que poderá vir a ser um dia, se deixada quieta, uma área de regeneração. Essa, do vizinho, tinha algumas árvores mais altas perto da mata da RPPN que mantenho em Minas. Para o fogo passar da copa de uma para a de outra, bastava uma lufada de vento.

E ventava. No chão, o fogo corria veloz com a ajuda do capim seco e se aproximava perigosamente.

A Reserva tem 18 hectares de área preservada, mas a gente vem há vários anos replantando espécies de Mata Atlântica, ao lado, em mais 18 hectares. Com outros pedaços, preservamos ao todo 46 hectares.

Tem sido um sufoco que foi empolgando todo mundo que trabalha lá: aprender o que fazer, o que plantar, achar parceiros, encontrar mudas, plantar na hora certa, torcer pelo tempo certo, proteger da braquiária, com quem as mudas travam luta de vida ou morte.

Ao todo, plantamos 22 mil mudas. As das espécies pioneiras estão altas. Há áreas de regeneração natural.

Os muitos dispersores vão ajudando.

Quanto mais protegemos e refizemos o que um dia foi destruído, mais a terra agradeceu.

Os pássaros voltaram, as águas das nascentes ficaram mais abundantes, mamíferos aparecem: raros, ariscos e belos. A ideia foi, então, saber melhor o tamanho do patrimônio. Chamamos dois ornitólogos do Aves Gerais e eles fizeram um primeiro levantamento promissor. Naquele pedacinho foram detectados em poucos dias de pesquisa 120 espécies: algumas raras, três em extinção, muitas endêmicas da Mata Atlântica. Algumas espécies eram florestais, o que significa que precisam de árvores altas, áreas de recuperação avançada. Todos esses dados atestam a qualidade da matinha que temos protegido em Minas, perto de Santos Dumont.

Mas o fogo veio no meio da noite. Ameaçador. Quem viu não esquece. O clarão era forte, tão forte, que Deo, o primeiro a chegar, nem precisou de lanterna para subir o morro; outros foram chegando de repente. Vizinhos não precisaram ser chamados. Com galhos, facões e algumas técnicas aprendidas iam enfrentando as chamas.

- Parecia uma guerra, a gente estava lutando de um lado e, de repente, olhava e aparecia alguém ao seu lado para ajudar - contou Elmar, meu sobrinho.

Os ornitólogos, que haviam ido lá meses atrás, nos deram um aviso e um presente.

O aviso foi que a gente precisa convencer vizinhos a fazer corredores, para que os pássaros e quaisquer outros seres da fauna possam transitar por espaços maiores. Conseguimos com um deles e vamos levar nossa plantação de mudas nativas até a área que ele tem. O presente foi uma palestra para crianças de uma escola rural próxima.

No dia, fomos todos lá à escola. Montamos o data show com saída de som e eu avisei para as crianças que elas teriam uma aula com Lucas e Luciene, doutores em passarinho. A criançada gostou e surpreendeu: sabia muito, vibrou com os sons, reconheceu vários.

Na noite do incêndio, estava completando um mês que meu sobrinho tinha me alertado para a necessidade de fazer um aceiro: uma espécie de cordão de isolamento, uma área sem vegetação em torno da mata para protegê-la do fogo. Para isso, precisávamos alugar trator de esteira. Custa caro a hora. Com tanto incêndio, a gente decidiu investir: refazer o aceiro, mais largo que o anterior, mais bem feito, caprichado.

Foi o que salvou. A luta de todos os voluntários, vizinhos e funcionários e aquela proteção detiveram o fogo no limite da mata.

Andei por lá no fim de semana passado, vi as cicatrizes, árvores carbonizadas, chão calcinado numa área enorme. O preto do chão queimado estancou na beirinha do aceiro. Pássaros, árvores, bichos que habitam aquele lugar foram salvos pela prevenção e pelo esforço coletivo. Foi tão perto que não deixa dúvidas: o melhor é ampliar o aceiro para a área onde a mata está sendo refeita.

Essa é a história do incêndio que foi detido. Outros, milhares, não foram. O balanço deste ano é assustador.

Como já escrevi aqui, depois de ouvir especialistas, a seca não causa o fogo.

Ela apenas permite que ele se alastre. O fogo vem de atitudes criminosas, práticas velhas da agricultura, descuido, incapacidade do governo, leniência, conluio.

Na volta para o Rio, no domingo passado à noite, passamos por focos gigantes de incêndio perto de Matias Barbosa, perto de Petrópolis.

Vários. Eles devastavam área verde, engoliam os pastos, enfumaçavam a estrada, entupiam os pulmões.

O meu pequeno pedaço foi protegido dessa vez. No sábado à noite, havia ido com alguns fotógrafos para o alto do morro. Eles queriam tirar fotos noturnas de umas velhas araucárias.

Foram de carro com equipamento, decidi ir a pé e cheguei primeiro. Antes, pus perneiras para me proteger de eventuais cobras, porque, segundo meu amigo Ailton Krenak, a natureza é como abelha: faz mel e tem ferrão. Lá de cima, na área onde as árvores ainda estão pequenas, vi, sozinha, cair a noite. Escuro breu. De repente, ouvi um barulho do lado, olhei com uma lanterna: uma enorme coruja passou voando, bem rente de mim, me encarando.

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