Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, setembro 15, 2010

Entre fraldas e fraudes/Roberto DaMatta

O Globo - 15/09/2010



Quando virei avô, um papel social para o qual eu contribuí apenas indiretamente, pois como sabe o óbvio mais ululante quem faz os netos são os nossos filhos, entendi a força daquilo que chamamos de “graça”.

A graça de ter uma filhinha e dois filhos que repetiam o lado mais humildemente humano do meu trajeto, correndo o risco de gerar filhos e, mais que isso, de honrá-los neste mundo; a graça de viver o papel de “pai com açúcar” ou de ser “pai duas vezes” porque os elos entre os avós e os netos têm aquela mesma obliquidade ou distância da dos tios: eles passam por uma outra pessoal, são sempre indiretos. Por isso permitem o resgate de uma igualdade insuspeita, marcada por uma liberdade graciosa e, às vezes, repleta de humor, que permite falar com os netos sobre coisas impossíveis de serem tocadas com os filhos. Outro dia, perg u n t e i a o m e u n e t o mais velho, Samuel, se ele estava amando muito.

Ouvi um bom e sonoro sim como resposta e, em seguida, a pergunta inesperada que só ocorre entre iguais: e você vovô, como vai de vida amorosa? Bill Cosby, um genial comediante americano negro, contava como, com 10 anos de idade, foi visitar o avô que, engravatado, lhe ofereceu uma cerveja, deu-lhe um charuto, sentou-o numa confortável cadeira de balanço e, em seguida, perguntou-lhe sobre o que ele achava da política do Partido Democrata.

Cosby discutia política nacional dando gostosas baforadas com o pai do seu pai, quando o genitor chegou e liquidou a farra de uma igualdade que só pode existir entre as gerações alternadas, como sabiam os antropólogos da minha tribo. Os laços entre pais e filhos contêm uma rígida autoridade que se alterna e compensa pelo trata mento chistoso e livre entre avós (ou tios) e netos (e sobrinhos), esses papéis que eram semelhantes em Roma e em muitos outros sistemas de família e parentesco

Podemos ser fraudes como genitores, mas é impossível fraudar o papel de avô. Num caso, exige-se muito; noutro, a fraude é substituída pelas fraldas.

Ora, fraudar é mais do que mentir: é criar ilusões, é inventar competências, é encobrir malfeitos com imagens e propaganda enganosa. Fraldar, porém, diz respeito a fazer o exato oposto. Trata-se de vestir o infante, dando-lhe aquela primeira tintura de um traço que temos como básico na nossa sociedade: a diferença essencial entre o sujo e o limpo.

Se as regras forem realmente honradas, as fraudes devem ser punidas; fraldas, entretanto, são jogadas fora. Mas tanto a fralda quanto a fraude implicam alguma “sujeira” no sentido popular do termo. Fraudes remetem a falcatruas e hipocrisias (por exemplo: eu falo que vou fazer isso ou aquilo só para ter votos); fraldas têm tudo a ver com mamadas e banhos que fazem crescer. Ademais, elas limpam e separam o sujo do limpo. Entendese, portanto, o ato falho auditivo da candidata Dilma quando, ao ser perguntada sobre “fraldas”, entendeu que era questionada sobre “fraudes”.

Essas mal traçadas sobre o que significa ser avó ou avô, esses papéis nos quais — dizem — o sexo e a sexualidade não têm mais importância, talvez ajudem a compreender a falha da audição de uma candidata tão preocupada em pretender ser o que obviamente não é; que a fralda da avó se confunde com a fraude tão comum na política do partido que ela representa.

Um dia eu escrevi um texto teorizando sobre o “voto amigo”, no qual jus-tificava por que não ia votar motivado ideologicamente, mas por simpatia pessoal. A nota, que foi recebida furiosamente por uma esquerda que sempre espuma de ódio com os outros, mas vive debaixo de uma ética de condescendência consigo mesma, foi escrita com o intuito de politizar os elos pessoais. Os laços de amizade e reciprocidade que até hoje nos obrigam a escolher mais pessoas amigas do que representantes dos movimentos sociais como motivos para o voto. Se tudo — inclusive e, sobretudo, o sexo — é política, como me ensinava um professor ativista nos idos de 1960, então por que os amigos não são também “politizáveis” e, assim assumidos, transformados em figuras capazes de trazer a nossa consciência que se quer transformadora, as eventuais desarmonias entre partidos e ideologias; entre as incoerências dos hábitos praticados sem pensar e das instituições desenhadas para transformar o mundo? Afinal de contas, eis o que eu dizia, se exigimos uma politização do mundo, como deixar de fora os amigos, a casa, os parentes e os compadres? Se a coerência é impossível, não seria o caso de discuti-la e, assim, politizá-la no sentido mais produtivo desta palavra? Fiquei muito feliz descobrindo que muitos brasileiros geniais, ilustres e sábios, como Caetano Veloso e Oscar Niemeyer, vão votar em amigos. O arquiteto vai votar em Marco Maciel — um neoliberal que, para muitos, deveria queimar no inferno — porque, diz Niemeyer, “eu o conheço há tempo honestíssimo” — enfatiza.

Haveria algum problema entre o desejo de mudar, permanecendo leal àqueles que “eu conheço”? A amizade suspende todos os juízos, leis e normas? Afinal pelos amigos podemos fazer tudo. E se Judas, Stalin, Fidel, Chávez ou Hitler fossem meus amigos?

Eu acho que é preciso distinguir fraudes e fraldas. E essa distinção é o projeto mais básico no nosso momento político-eleitoral.

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