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Mula sem cabeça
Uma biografia de Robespierre, o monstro político que inventou
o totalitarismo e matou milhares – antes de morrer guilhotinado
Nelson Ascher
Álbum/Latinstock e Time Life Pictures/Getty Images
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O ESPÍRITO MAIS RADICAL Robespierre, em quadro de Boilly, e, na gravura, decapitando o carrasco, depois de haver guilhotinado toda a França |
A Revolução Francesa, que estourou em 1789, é um evento cuja interpretação permanece, em grande medida, em aberto. Isso vale para seus episódios centrais, assim como para seus protagonistas. Entre estes, nenhum é mais enigmático do que Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794), tema dePureza Fatal (tradução de Marcelo Schild; Record; 448 páginas; 59,90 reais), da historiadora inglesa Ruth Scurr. Embora se discuta até que ponto o ator central foram as massas francesas e até que ponto os personagens famosos conduziram os acontecimentos ou foram arrastados por eles, se houve alguém cujas ideias, ações e a própria personalidade encarnaram o espírito mais radical daqueles anos, esse alguém foi Robespierre.
Filho de um advogado que, endividado, abandonou a família e de uma mãe que morreu cedo, Maximilien, aluno dedicado, superou as dificuldades e, como o pai, tornou-se advogado. Mal começara a praticar quando o monarca absoluto Luís XVI tentou, para salvar o estado da bancarrota à beira da qual guerras malsucedidas o haviam levado, introduzir reformas administrativas e fiscais. Para tanto, o rei convocou os Estados-Gerais, assembleia na qual se reuniam os representantes de todas as ordens sociais, e, com isso, abriu uma caixa de Pandora que mergulharia o país numa prolongada crise. Esta resultou na sua execução, bem como na transformação da França em república. A partir daqui, qualquer descrição dos eventos singulares já implica se associar a alguma vertente historiográfica. Conservadores argumentam que a revolução foi algo contingente, superficial, que em nada alterou as estruturas sociais mais profundas. Robespierre apenas protagonizou um festim de violência sanguinária. Segundo os adeptos da vulgata jacobino-marxista, no polo oposto, a revolução exemplifica a derrubada de uma classe social, a aristocracia feudal, por sua sucessora, a burguesia. Para eles, Robespierre é um herói que, adiantando-se à história, procurou dar o poder às massas trabalhadoras. Até suas ações mais brutais deveriam ser aplaudidas – como sugere, por exemplo, o filósofo esloveno Slavoj Zizek, epítome da boçalidade de esquerda.
Ciente da polêmica, a biógrafa detalha cada passo da carreira revolucionária de seu personagem. Influenciado pela leitura de Jean-Jacques Rousseau, ele mesmo autor de ensaios e poemas (aliás, medíocres), Robespierre era um patriota ardoroso, julgava-se o paladino do povo e pretendia instaurar uma "república da virtude". Imbuído de certezas, tornou-se um orador temível que, apoiando de início as liberdades democráticas, acabou recorrendo à censura, aos julgamentos sumários e à guilhotina. Aderindo à revolução desde seus primeiros atos, ele e seus aliados, entre 1793 e 1794, praticamente monopolizaram o poder. Nesse ínterim, deflagraram o episódio conhecido como o Terror, que pode ser caracterizado como o nascimento da moderna política autocrática ou mesmo totalitária. Durante esse período, com a nação envolvida em guerras e as garantias normais suspensas, Robespierre, temendo paranoicamente inimigos internos, dedicou-se a eliminar rivais (além de milhares de inocentes), até que os sobreviventes o depuseram e guilhotinaram.
O retrato que a autora apresenta não se compõe só de desmandos e crueldade. O revolucionário paradigmático, que chegou a rebatizar os meses do ano e a substituir o cristianismo por um culto ao "Ser Supremo", contribuiu também para a codificação dos direitos humanos, ajudou a elaborar uma Constituição moderna e pregava a escolaridade universal. Ainda assim, com a perspectiva dos horrores desencadeados pela ideologia no século XX, o legado de um tirano que politizou as mais diversas esferas da vida humana e, a seu modo, inventou a engenharia social só pode ser considerado negativo
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Pureza fatal, de Ruth Scurr Nenhum momento histórico iguala-se ao da Revolução Francesa. Ela fervilha com vida e arde com interesse humano, histórico, intelectual e literário. Mais do que assombro, ela gera obsessão, pois se recusa a morrer. Quando François Furet, seu maior historiador francês dos últimos anos, declarou em 1978: “A Revolução Francesa acabou”, ele gerou grandes ondas de academicismo revisionista em toda a França, além do Canal da Mancha e no outro lado do Atlântico, provando que ela ainda vivia. Com o bicentenário da Revolução, em 1989, e o colapso do comunismo em toda a Europa no mesmo ano, esse novo academicismo colocou uma geração jovem cara a cara com as esperanças vívidas de 1789 — liberdade, igualdade, fraternidade, soberania popular, democracia representativa, direitos e felicidade. Esperanças que resultaram, apenas quatro anos depois, no Terror: o sistema de governo de emergência e execução sumária com o qual ninguém era mais intimamente relacionado do que Maximilien Robespierre. Um homem pálido e frágil, Robespierre era ansioso, hesitante e íntegro. Antes da Revolução, ganhava a vida como um jovem advogado na cidade de Arras, na província de Artois, no norte da França. Ficava consistentemente do lado dos vitimizados e opunha-se fervorosamente à pena de morte. Eloquente tanto pessoalmente quanto na escrita, porém de maneira formal e contida, cortava muito do que redigia, aperfeiçoando nervosamente sua prosa, e tinha dificuldades em projetar a voz em público. Sua aparência era meticulosamente parcimoniosa. Os olhos eram fracos, a mente ocasionalmente vaga e os discursos metódicas e sem sal. Ele deveria ter sido tragado pela enxurrada de eventos e desaparecido frente às personalidades profundamente marcantes da Revolução. Em vez disso, Robespierre tornou-se a personificação da Revolução em seu estado mais feroz e justificou o Terror como uma emanação da virtude republicana, um passo necessário no caminho para a sociedade ideal que estava determinado a estabelecer na França. Por mais desesperadamente utópica, politicamente desencaminhada ou historicamente prematura que possa ter sido a visão de Robespierre dessa sociedade ideal, ele fez uma contribuição sem igual aos eventos que moldaram o futuro da Europa. Compreendê-lo significa começar a compreender a Revolução Francesa — e também ilumina a desconfortável coincidência de democracia e fanatismo presente no nascimento da política europeia moderna. O caos político pode gerar líderes improváveis. A figura medíocre que se exibe com pompa e preocupação no palco histórico em meio a uma revolução é sempre mais interessante do que alguém que simplesmente herda o poder ou é eleito em tempos mais tranquilos. Mas a mediocridade de Robespierre é apenas incidental: uma arma — em certos aspectos — nas mãos de seus detratores e inimigos, mas nunca a chave para o mistério pessoal e histórico que o envolve. Existiram revolucionários intelectualmente mais dotados. Existiram escritores e oradores melhores, assim como personagens mais simpáticos. Muitos discordaram politicamente de Robespierre em todas as etapas, de sua eleição para os Estados Gerais na véspera da Revolução, em 1789, à sua morte na guilhotina, em 1794 — geralmente por bons motivos. Mas ele não pode ser explicado por aquilo que lhe faltava ou pelas coisas que deixou de ver e de fazer. A personalidade privada de Robespierre e sua contribuição pública aos eventos que inauguraram a política moderna europeia são complexas — todos concordam que ele era notavelmente estranho, e a Revolução Francesa foi espetacularmente complicada. Seus restos mutilados mal haviam sido recolhidos, jogados em uma cova sem identificação e cobertos com cal viva, quando se iniciaram os esforços para se compreender a ligação entre a personalidade de Robespierre e seu papel na Revolução. Apesar de sua curta carreira política ter sido longa o suficiente para garantir-lhe uma posição duradoura na história mundial, ela não durou o bastante para mostrar de forma convincente se tal posição é, por direito, um lugar de honra, de vergonha ou algo inescrutável entre os dois. Para seus inimigos — vivos e mortos — ele estará sempre colorido de vermelho- sangue: o primeiro dos ditadores modernos, aquele que inventou e perpetrou o Terror e enviou milhares ao encontro da morte. Um inimigo, com sorte o bastante para permanecer vivo, previu: A história dirá pouco a respeito deste monstro; ela se limitará a estas palavras: “Naquele momento, a desestruturação interna da França era tal que um charlatão sedento de sangue, sem talento nem coragem, chamado Robespierre, fez todos os cidadãos tremerem sob sua tirania. Enquanto mil e duzentos soldados derramavam o próprio sangue nas fronteiras da república, ele a colocou de joelhos com suas condenações.”
Difamação e menosprezo foram consequências inevitáveis do Terror, mas “charlatão sedento de sangue” não pode ser uma descrição satisfatória do advogado obstinado que se opunha à pena de morte antes da Revolução e que depois se tornou o pacifista mais articulado da França quando a guerra com o resto da Europa começava a despontar. Por outro lado, as nuances mais sutis com que os amigos o descrevem — reservado, enigmático, profundamente íntegro, o primeiro dos democratas modernos — também não são satisfatórias. Para eles, Robespierre foi um profeta da ordem política do futuro injustamente caluniado. Quase cinquenta anos depois de sua morte, um deles escreveu: “Eu daria minha vida para salvar Robespierre, que amei como a um irmão. Ninguém sabe melhor do que eu como sua devoção à República era sincera, desinteressada e absoluta. Ele tornou-se o bode expiatório dos revolucionários, mas era o melhor homem entre todos eles.” Um biógrafo simpático a ele chegou a ponto de insistir: “Quanto mais eu provar que a conduta de Robespierre teve inspiração divina — maior será o horror com o qual sua memória será guardada pelas classes alta e média.” A esquerda francesa e de outros lugares tem descrito Robespierre principalmente como o defensor da República e do ideal da democracia social: uma testemunha apaixonada dos sofrimentos dos pobres e das virtudes dos humildes ou oprimidos traídos pela história. Ele foi, afinal de contas, o revolucioná- rio que tentou mudar a Declaração de Direitos para limitar a propriedade privada e sacramentar o direito de todos à vida e à subsistência. Foi Robespierre quem disse: “Quando é que o povo será educado? Quando tiver pão suficiente para comer, quando os ricos e o governo deixarem de subornar penas e línguas traiçoeiras para enganá-lo... Quando isto acontecerá? Nunca.” Contudo, qualquer que seja o ponto de vista, a personalidade de Robespierre e a Revolução não podem ser separadas. Não são apenas os historiadores, hostis ou simpáticos, que insistem no que acreditam. Ele se autoproclamou o representante da república pura da virtude, e até mesmo seus adversários reconheciam a propriedade da alcunha “incorruptível”. (“Ele pagaria a alguém para lhe oferecer ouro somente para poder dizer que o recusara”, debochou um deles.) Sua identificação com a Revolução só cresceu com a intensificação do Terror. Quando Robespierre revelou uma nova e perfeita religião, o Culto do Ser Supremo, no festival público de mesmo nome, assumiu o papel central simbólico de sumo sacerdote. Dois dias depois, promulgou a infame Lei de 22 Prairial, que impedia qualquer defesa possível diante do Tribunal Revolucionário. Execução sumária era a ordem do dia: Robespierre e a República tornaram-se um único e o mesmo tirano. Quando foi, exatamente, que o advogado de Arras começou a acreditar na imagem que a Revolução lhe refletia? Por que tal imagem tornou-se tão perigosamente hipnótica tanto para ele, pessoalmente, quanto para seus contemporâneos e para a posteridade? E por que será que é tão difícil quebrar tal encanto e compreender — talvez com imperfeição, mas pelo menos com clareza — quem era Robespierre e o que ele significou? Pureza fatal tenta responder a essas questões. Este livro não expressa nem adulação partidária nem animosidade exagerada; em vez disso, é motivado pelo interesse imparcial que Robespierre merece. Ele tenta, sempre que possível, conceder-lhe o benefício da dúvida racional. Apesar de ter morrido há mais de duzentos anos, Robespierre ainda faz novos amigos e inimigos entre os vivos. Tentei ser sua amiga e ver as coisas por meio de seu ponto de vista. Mas os amigos, como ele sempre suspeitou, podem ser traiçoeiros — eles têm oportunidades para cometer traição que os inimigos somente sonham ter. |
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