Pureza fatal, de Ruth Scurr Nenhum momento histórico iguala-se ao da Revolução Francesa. Ela fervilha com vida e arde com interesse humano, histórico, intelectual e literário. Mais do que assombro, ela gera obsessão, pois se recusa a morrer. Quando François Furet, seu maior historiador francês dos últimos anos, declarou em 1978: “A Revolução Francesa acabou”, ele gerou grandes ondas de academicismo revisionista em toda a França, além do Canal da Mancha e no outro lado do Atlântico, provando que ela ainda vivia. Com o bicentenário da Revolução, em 1989, e o colapso do comunismo em toda a Europa no mesmo ano, esse novo academicismo colocou uma geração jovem cara a cara com as esperanças vívidas de 1789 — liberdade, igualdade, fraternidade, soberania popular, democracia representativa, direitos e felicidade. Esperanças que resultaram, apenas quatro anos depois, no Terror: o sistema de governo de emergência e execução sumária com o qual ninguém era mais intimamente relacionado do que Maximilien Robespierre. Um homem pálido e frágil, Robespierre era ansioso, hesitante e íntegro. Antes da Revolução, ganhava a vida como um jovem advogado na cidade de Arras, na província de Artois, no norte da França. Ficava consistentemente do lado dos vitimizados e opunha-se fervorosamente à pena de morte. Eloquente tanto pessoalmente quanto na escrita, porém de maneira formal e contida, cortava muito do que redigia, aperfeiçoando nervosamente sua prosa, e tinha dificuldades em projetar a voz em público. Sua aparência era meticulosamente parcimoniosa. Os olhos eram fracos, a mente ocasionalmente vaga e os discursos metódicas e sem sal. Ele deveria ter sido tragado pela enxurrada de eventos e desaparecido frente às personalidades profundamente marcantes da Revolução. Em vez disso, Robespierre tornou-se a personificação da Revolução em seu estado mais feroz e justificou o Terror como uma emanação da virtude republicana, um passo necessário no caminho para a sociedade ideal que estava determinado a estabelecer na França. Por mais desesperadamente utópica, politicamente desencaminhada ou historicamente prematura que possa ter sido a visão de Robespierre dessa sociedade ideal, ele fez uma contribuição sem igual aos eventos que moldaram o futuro da Europa. Compreendê-lo significa começar a compreender a Revolução Francesa — e também ilumina a desconfortável coincidência de democracia e fanatismo presente no nascimento da política europeia moderna. O caos político pode gerar líderes improváveis. A figura medíocre que se exibe com pompa e preocupação no palco histórico em meio a uma revolução é sempre mais interessante do que alguém que simplesmente herda o poder ou é eleito em tempos mais tranquilos. Mas a mediocridade de Robespierre é apenas incidental: uma arma — em certos aspectos — nas mãos de seus detratores e inimigos, mas nunca a chave para o mistério pessoal e histórico que o envolve. Existiram revolucionários intelectualmente mais dotados. Existiram escritores e oradores melhores, assim como personagens mais simpáticos. Muitos discordaram politicamente de Robespierre em todas as etapas, de sua eleição para os Estados Gerais na véspera da Revolução, em 1789, à sua morte na guilhotina, em 1794 — geralmente por bons motivos. Mas ele não pode ser explicado por aquilo que lhe faltava ou pelas coisas que deixou de ver e de fazer. A personalidade privada de Robespierre e sua contribuição pública aos eventos que inauguraram a política moderna europeia são complexas — todos concordam que ele era notavelmente estranho, e a Revolução Francesa foi espetacularmente complicada. Seus restos mutilados mal haviam sido recolhidos, jogados em uma cova sem identificação e cobertos com cal viva, quando se iniciaram os esforços para se compreender a ligação entre a personalidade de Robespierre e seu papel na Revolução. Apesar de sua curta carreira política ter sido longa o suficiente para garantir-lhe uma posição duradoura na história mundial, ela não durou o bastante para mostrar de forma convincente se tal posição é, por direito, um lugar de honra, de vergonha ou algo inescrutável entre os dois. Para seus inimigos — vivos e mortos — ele estará sempre colorido de vermelho- sangue: o primeiro dos ditadores modernos, aquele que inventou e perpetrou o Terror e enviou milhares ao encontro da morte. Um inimigo, com sorte o bastante para permanecer vivo, previu: A história dirá pouco a respeito deste monstro; ela se limitará a estas palavras: “Naquele momento, a desestruturação interna da França era tal que um charlatão sedento de sangue, sem talento nem coragem, chamado Robespierre, fez todos os cidadãos tremerem sob sua tirania. Enquanto mil e duzentos soldados derramavam o próprio sangue nas fronteiras da república, ele a colocou de joelhos com suas condenações.”
Difamação e menosprezo foram consequências inevitáveis do Terror, mas “charlatão sedento de sangue” não pode ser uma descrição satisfatória do advogado obstinado que se opunha à pena de morte antes da Revolução e que depois se tornou o pacifista mais articulado da França quando a guerra com o resto da Europa começava a despontar. Por outro lado, as nuances mais sutis com que os amigos o descrevem — reservado, enigmático, profundamente íntegro, o primeiro dos democratas modernos — também não são satisfatórias. Para eles, Robespierre foi um profeta da ordem política do futuro injustamente caluniado. Quase cinquenta anos depois de sua morte, um deles escreveu: “Eu daria minha vida para salvar Robespierre, que amei como a um irmão. Ninguém sabe melhor do que eu como sua devoção à República era sincera, desinteressada e absoluta. Ele tornou-se o bode expiatório dos revolucionários, mas era o melhor homem entre todos eles.” Um biógrafo simpático a ele chegou a ponto de insistir: “Quanto mais eu provar que a conduta de Robespierre teve inspiração divina — maior será o horror com o qual sua memória será guardada pelas classes alta e média.” A esquerda francesa e de outros lugares tem descrito Robespierre principalmente como o defensor da República e do ideal da democracia social: uma testemunha apaixonada dos sofrimentos dos pobres e das virtudes dos humildes ou oprimidos traídos pela história. Ele foi, afinal de contas, o revolucioná- rio que tentou mudar a Declaração de Direitos para limitar a propriedade privada e sacramentar o direito de todos à vida e à subsistência. Foi Robespierre quem disse: “Quando é que o povo será educado? Quando tiver pão suficiente para comer, quando os ricos e o governo deixarem de subornar penas e línguas traiçoeiras para enganá-lo... Quando isto acontecerá? Nunca.” Contudo, qualquer que seja o ponto de vista, a personalidade de Robespierre e a Revolução não podem ser separadas. Não são apenas os historiadores, hostis ou simpáticos, que insistem no que acreditam. Ele se autoproclamou o representante da república pura da virtude, e até mesmo seus adversários reconheciam a propriedade da alcunha “incorruptível”. (“Ele pagaria a alguém para lhe oferecer ouro somente para poder dizer que o recusara”, debochou um deles.) Sua identificação com a Revolução só cresceu com a intensificação do Terror. Quando Robespierre revelou uma nova e perfeita religião, o Culto do Ser Supremo, no festival público de mesmo nome, assumiu o papel central simbólico de sumo sacerdote. Dois dias depois, promulgou a infame Lei de 22 Prairial, que impedia qualquer defesa possível diante do Tribunal Revolucionário. Execução sumária era a ordem do dia: Robespierre e a República tornaram-se um único e o mesmo tirano. Quando foi, exatamente, que o advogado de Arras começou a acreditar na imagem que a Revolução lhe refletia? Por que tal imagem tornou-se tão perigosamente hipnótica tanto para ele, pessoalmente, quanto para seus contemporâneos e para a posteridade? E por que será que é tão difícil quebrar tal encanto e compreender — talvez com imperfeição, mas pelo menos com clareza — quem era Robespierre e o que ele significou? Pureza fatal tenta responder a essas questões. Este livro não expressa nem adulação partidária nem animosidade exagerada; em vez disso, é motivado pelo interesse imparcial que Robespierre merece. Ele tenta, sempre que possível, conceder-lhe o benefício da dúvida racional. Apesar de ter morrido há mais de duzentos anos, Robespierre ainda faz novos amigos e inimigos entre os vivos. Tentei ser sua amiga e ver as coisas por meio de seu ponto de vista. Mas os amigos, como ele sempre suspeitou, podem ser traiçoeiros — eles têm oportunidades para cometer traição que os inimigos somente sonham ter. |