Trilhões ao léu
Jornalista americano radicado no Brasil faz a
crônica da primeira crise global do século XXI
Giuliano Guandalini
Walker Evans/Corbis/Latinstock |
UM DRAMA MENOR Uma família americana empobrecida nos anos 30: "O sofrimento de hoje ainda é pequeno comparado à experiência da Grande Depressão" |
O ser humano tem um gosto especial pelos números grandes. Historiadores registraram a tendência, desde as civilizações mais antigas, de superestimar o número de inimigos aniquilados em combate ou de exagerar a quantidade de reses num rebanho. Esse cacoete ficou explícito nos anos estouvados que culminaram na formação da maior bolha na história dos mercados mundiais - o total de ativos financeiros alcançou a cifra de 200 trilhões de dólares, mais que o triplo do PIB mundial. "Os rebanhos e os inimigos de hoje são as empresas financeiras. Elas adoram números grandes", diz o jornalista americano Norman Gall nos parágrafos iniciais de O Terremoto Financeiro - A Primeira Crise Global do Século XXI (Campus Elsevier; 168 páginas; 49,90 reais). Gall, que nasceu em Nova York mas vive em São Paulo há mais de trinta anos, é o diretor do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Com prefácio do economista Arminio Fraga, o livro trata das origens da crise financeira internacional, traça paralelos com a Grande Depressão de 30 - incluindo um interessante comparativo entre os presidentes americanos Franklin Delano Roosevelt e Barack Obama - e descreve a ação inédita dos governos para estabilizar a economia.
O dilema, analisa Gall, é que tão grande quanto seu amor por números polpudos é a incapacidade do homem de lidar com eles. A começar por uma limitação cognitiva do cérebro, que torna difícil dar significado concreto a cifras na casa do trilhão (1 seguido de doze zeros). Há 1 trilhão de segundos (31 000 anos atrás) os neandertais ainda não haviam sido extintos. Mas, nas discussões sobre finanças, 1 trilhão de dólares tornou-se um valor acanhado, mera fração daquilo que evaporou nas bolsas globais em 2008. A deficiência humana no entendimento dos números se estende à administração das finanças pessoais. Nos anos de fartura, o crédito fluía fácil para pessoas e empresas que não sabiam como usá-lo apropriadamente e se enredaram em dívidas que logo se revelariam insolvíveis - nada muito diferente do que ocorrera há oitenta anos, diz Gall, levando ao crash de 1929.
Otavio Dias Oliveira |
AFOGANDO EM NÚMEROS Gall: as pessoas são incapazes de compreender cifras gigantes |
Com o fim do castelo de papéis financeiros sobre os quais se erigiu a bolha, restaram nos escombros do terremoto a fraude do vigarista Bernard Madoff, os trambiques das instituições financeiras e uma grande interrogação a respeito do que virá. A operação de salvamento representou um aprofundamento no endividamento público que sacrificará recursos que deveriam ser investidos no bem-estar futuro. Como descreve Gall, está "em jogo a capacidade do estado, submetido a pressões fiscais crescentes, de construir e manter a infraestrutura, de educar suas populações, de travar guerras, de responder a desastres naturais e epidemias". Espera-se que os políticos, subespécie especialmente deslumbrada com números vultosos, venham a se dar conta da magnitude da fatura dos trilhões.