Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 15, 2009

Os torpes labéus JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO


Agora, com o Google, brincadeiras como esta perderam a graça, mas, sem pesquisar na internet, tente lembrarse do que as palavras “torpes labéus” têm a ver com o dia de hoje. Não é preciso saber o que significam, até porque acho que isso, depois que o saudoso Antônio Houaiss nos deixou, ninguém mais sabe. Pensem aí, filhos ingratos, que dia é hoje? Pois é, se caísse na segunda-feira, vocês se lembrariam, por causa do feriadão.


Hoje é o grande feriado da Proclamação da República, que no momento pode não estar assim em esplendorosas condições de funcionamento, mas é a que temos.


E os torpes labéus? Bem, neste ponto tenho que curvar-me ao fato de que as gerações mais novas, ou até as menos velhas, não encararam todos os hinos que o pessoal dos velhos tempos encarava. Aliás, ao que parece, encararam apenas o Hino Nacional e, assim mesmo, sem muita aplicação. Portanto, não se pode estranhar que bem pouca gente lembre o Hino da República, que é onde estão os torpes labéus — logo no quarto verso. Na verdade, nem é justo evocar o Hino da República através dos torpes labéus. Ao contrário do lábaro que ostentas e da terra mais garrida, que na escola nos ensinavam o que queriam dizer, ninguém dava pelota para os torpes labéus. Na escola de d. Madalena, em Itaparica, meu colega Mundinho Budião inventou que era xingamento dos mais pesados concebíveis e, durante algum tempo, várias brigas se travaram depois de um xingar outro de torpilabéu fidumaégua. E Mundinho, que sempre foi de boa paz, mas não levava desaforo para casa, até hoje deve ser homem de dar uma mãozada em quem o chamar de torpilabéu.


Sim, não é justo que o Hino da República seja lembrado apenas por essa associação negativa. A parte boa ainda está bem viva na memória de muitos. É o estribilho, que diz “Liberdade! Liberdade!/Abre as asas sobre nós!/Das lutas na tempestade/Dá que ouçamos tua voz!” Garanto que mais diversos entre vocês recordaram agora não só a letra como a melodia, alegre e reconfortante, a liberdade, simpaticíssima, abrindo as asas para nos proteger. Bem verdade que, de 1889 para cá, fecharam as asas dela algumas vezes e tem sempre quem queira dar pelo menos uma aparadinha nelas, mas a estrofe continua boa, bem como o desejo nela expresso.


Quanto aos mais torpes labéus do passado, foram todos remidos, diz mais ou menos o hino. Ou seja, antes da República, devemos ter obrado ou causado todo tipo de torpe labéu possível, em tal proporção que somente uma providência radical poderia redimir o horrendo passado. Aí nos livramos do Imperador e de toda a nobreza local (no hino chamados de “púrpuras régias”) e instituímos a República, episódio ainda não perfeitamente entendido pela maior parte de nós — querem ver, saiam perguntando por aí. Mas com ele resolvemos todos os nossos problemas, pelo menos a se julgar pelo hino.


No entanto, como sabemos, há controvérsias. Em Itaparica já são finados os monarquistas e republicanos históricos, mas permanecem rixas ancestrais, bem como um forte núcleo monarquista, sobre o qual razões de segurança me impedem de revelar mais detalhes. Comentam os maledicentes que, desde 1890, um comitê de militantes discute a redação de um convite endereçado ao futuro rei da ilha, mas ninguém concorda quanto aos termos desse documento.


E mencionem-se também os anarquistas, como meu finado primo Walter Ubaldo, o filósofo do sorriso de desdém, que dizia que a única consequência da Proclamação da República tinha sido um grande aumento de gente para se xingar, com muito maior variedade.


Também creio que, numa demonstração de como a política nacional está presente na vida da ilha, ainda existem por lá alguns jogadores do chapéu do Marechal, passatempo em que o forasteiro não deve entrar a dinheiro, porque vai sair mais pobre.


Baseia-se em que todo mundo já viu pelo menos a reprodução de um quadro do marechal Deodoro proclamando a República montado em seu cavalo, mas ninguém consegue lembrar se a) ele estava com as duas mãos nas rédeas; b) ele estava de chapéu; c) ele estava erguendo o chapéu; d) ele estava erguendo a espada; e) ele etc., etc., conforme os jogadores presentes. O fato é que, por mais certeza que se tenha de como era o tal retrato, vai sempre aparecer, como prova apresentada na hora, um diferente do descrito pelo apostador.


Como é que se faz, não sei e nem o próprio Zecamunista, apesar da amizade, quis me contar, disse que era para meu próprio bem, impediria minha perdição irremediável.


— Vá por mim, vai lhe evitar os mais torpes labéus.


— Zeca, você também se lembra disso? — Claro que me lembro, não sou analfabeto. Mas eu detesto esse hino, só gosto da parte da liberdade.


— Mas o que é tão detestável nele? — Você não deve estar lembrado.


É a parte do ovante.


— A parte do quê? — Do ovante, já vi que você esqueceu.


Ele diz que nosso estandarte é ovante, isso sempre me pareceu uma ofensa.


— Mas que quer dizer “ovante”? — Não vem ao caso, veja no dicionário.


O fato é que, se uma mulher me chamasse de ovante, eu ia ficar grilado, você não ia, não? — Bem, a palavra realmente não tem um som bonito, mas...


— Não tem “mas”, eu não confio nesse hino. É porque você também esqueceu, mas, na hora em que ele fala em derramar sangue, tira o corpo fora e diz que Tiradentes já cuidou disso. Ovante é a mãe deles, não aceito.

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