Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 14, 2009

Entrevista Abraham Lowenthal


Será diferente com Obama?

O estudioso da América Latina diz que a visão míope dos Estados Unidos sobre a região impede o entendimento das diferenças cruciais entre os países


Ronaldo Soares

Oscar Cabral
"A força das organizações civis, da imprensa,
é parte muito importante na manutenção
da estabilidade"

O professor de relações internacionais da Universidade do Sul da Califórnia Abraham Lowenthal, 68 anos, é dos mais respeitados observadores das relações entre Estados Unidos e América Latina. Sua análise do que ocorre hoje no continente contraria a ideia de que existe um bloco sul-americano homogêneo, o que impede uma relação mais profícua. Ele tem alertado a administração de Barack Obama para o risco de se repetir a visão distorcida que vigorou nos últimos vinte anos. Esse é o ponto central de seu livro The Obama Administration and the Americas: Agenda for Change, em coautoria com outros dois especialistas, ainda não publicado no Brasil. Lowenthal está em viagem pela América Latina, preparando um novo livro sobre a região. Na semana passada, esteve no Rio de Janeiro, onde concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Os americanos enxergam a América Latina, não sem certo desprezo, como uma região homogênea que fica "ao sul do Rio Grande". Por que o senhor acha isso um equívoco?
Nos últimos vinte anos, especialmente em Washington, houve uma tendência do governo e dos dois principais partidos políticos de enxergar entre os países latino-americanos padrões convergentes de estabilidade macroeconômica, governança democrática, economia de mercado e integração regional. Isso fez com que muitos acreditassem que os países da América Latina e Caribe estão se tornando similares, indo numa mesma direção, ainda que em velocidades diferentes. E isso é um equívoco em relação ao que está realmente acontecendo na região. Prefiro trabalhar com características mais profundas para fazer essa distinção.

Quais são elas?
Há cinco dimensões que distinguem esses países. A primeira é o nível de dependência econômica e demográfica em relação aos Estados Unidos. Ele é muito alto no México, que tem 20% de sua força de trabalho empregada nos Estados Unidos. O mesmo se dá na região do Caribe e na maioria das nações da América Central. Esses países experimentam alto nível de interconexão, têm uma maneira diferente de se relacionar com a economia mundial. Possuem diversos problemas para resolver internamente e ao mesmo tempo apresentam desafios diferentes para os Estados Unidos. Há neles uma gama de questões que podem ser mais bem descritas com o neologismo "intermésticas". São questões internacionais e domésticas que se combinam. São assuntos relativos a imigração, carteira de habilitação e gangues juvenis.

"Duvido que o Mercosul como instituição possa ser fortalecido pelo envolvimento de Chávez. Pode ocorrer que, como na maioria das situações, ele traga divisões à organização"

Em que outros planos essas diferenças podem ser notadas?
A segunda dimensão que distingue esses países está no grau e na natureza de sua relação com a economia mundial. Quanto se encontram abertos à competição internacional e suas diferentes formas e graus de inserção. O Chile é talvez o melhor exemplo de país aberto ao mercado internacional. Tem grande atratividade para investimentos estrangeiros e mantém relações comerciais intensas e igualmente divididas com América do Norte, América do Sul, Ásia e Europa. Na outra ponta está Cuba, que por razões históricas é um país muito pouco integrado à economia mundial. A terceira dimensão tem a ver com a natureza e a força das instituições políticas. Particularmente, o grau de responsabilidade e de equidade na relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Da existência de imprensa livre e dos vários tipos de instituição que permitem a construção de um consenso e a tomada de decisões com confiança, criando estabilidade. Isso é vital para o futuro de um país. Não só para grandes indústrias, mas também para os cidadãos comuns, para os alunos que terminam a escola poderem decidir que caminho seguir. Tem muito a ver com a força das instituições políticas. Acho que elas são mais fortes em países como Chile, Uruguai e Costa Rica, e estão se fortalecendo no Brasil e caminhando para um nível significativo, embora não no mesmo patamar, na Colômbia. São fracas na Venezuela, na Argentina, na Bolívia.

As instituições políticas no Brasil não estão no mesmo nível que as do Chile, Uruguai e Costa Rica?
Bem, talvez estejam. Mas elas ainda vêm sendo testadas. Às vezes, é muito difícil entender o Congresso brasileiro. Seus integrantes trocam de partido frequentemente, volta e meia alguns deles estão sob investigação. Mas é inegável que houve avanços no país em termos de instituições políticas nos últimos anos. Graças, em parte, a um alto grau de consenso entre os dois principais partidos, PT e PSDB, no trato com a economia.

Aquilo que no passado se convencionou chamar de "sociedade civil" ainda tem voz?
A existência dela, que é a quarta dimensão desse meu mapa mental, continua tão vital quanto antes. Os países latino-americanos são bastante diferentes quando se examinam a natureza e a força das organizações não governamentais, da imprensa e das entidades que ajudam o cidadão a fiscalizar o governo. É uma parte muito importante na conquista e manutenção da estabilidade política. Em alguns países, houve avanços nessa área; em outros, a situação se deteriorou. A deterioração pior deu-se na Argentina. O setor não governamental argentino é mais instrumentalizado do que o setor governamental. Houve uma inversão. Isso enfraquece as instituições políticas. Quando estive na Argentina em 2006, logo no primeiro dia perguntei quando seriam as próximas eleições. Disseram-me: é uma questão complicada, vai depender do que a Suprema Corte decidir. Então me explicaram que a Suprema Corte deveria ter nove juízes, mas havia apenas sete. Só que, na Argentina, as decisões da corte são tomadas por maioria, ou seja, pelo voto de pelo menos cinco juízes. É muito difícil obter essa maioria com o total de sete. O Judiciário, então, insistia com o presidente para indicar outros dois juízes, mas este via uma vantagem em não ter uma corte em condições de funcionar, então simplesmente não os nomeava.

Segundo sua análise, os países podem ser classificados também pelas conquistas de suas minorias étnicas...
Sim. Essa é a quinta dimensão do meu painel de diferenciação na América Latina. Diz muito sobre o grau de desenvolvimento de um país a maneira como ele integra grupos sociais com longo histórico de exclusão. Refiro-me principalmente aos povos indígenas, aos descendentes dos africanos e às populações pobres que ainda sofrem discriminação e são exploradas em vários países. Encontrar uma forma de incorporar mais satisfatoriamente esses grupos é um desafio para os países que os têm em grande contingente populacional. O Brasil está obtendo uma conquista histórica nessa área, o que não acontece com tanta clareza na Colômbia, onde também houve avanços. Apesar de todo o proselitismo em contrário, a população indígena foi excluída na Bolívia, na Guatemala, em partes do México e do Peru.

Entender essas diferenças ajudaria o governo americano a se interessar mais pela região, não?
Muitos latino-americanos, incluindo vários amigos que tenho no Brasil, perguntam por que o governo, o presidente, o secretário de Estado e a imprensa americana não estão tão atentos ao que se passa por aqui. Estou há mais de quarenta anos nesse ramo e cheguei a uma conclusão. É preciso olhar para o grande número de interesses internacionais e relações que os Estados Unidos têm com a Europa, a Ásia, o Oriente Médio e a África. São muitas questões diferentes para resolver e ainda duas guerras a combater. Não é realista pensar que eles realmente vão gastar mais tempo e dar mais atenção ainda a outras regiões. Então mudei meu objetivo. Não acredito mais na eficácia de tentar aumentar o grau de atenção do governo ou da imprensa americana em relação à América Latina.

O senhor simplesmente desistiu?
Quase. Acho que ainda vale a pena tentar melhorar a qualidade da limitada atenção que eles têm devotado à região. Pode também ser melhorada a natureza das políticas oficiais americanas para a América Latina. Acho válido tentar a implantação de políticas para reforçar instituições financeiras, restaurar fluxos de crédito, acabar com problemas de energia, de crimes, saúde, habitação e educação. Isso é mais eficiente do que realizar um encontro de cúpula das Américas, trazer 34 ou 35 presidentes e dizer o.k., vamos desenhar um programa de cooperação. Nunca se desenha algo minimamente compreensível, algo com substância, justamente porque os países são tão diferentes entre si.

O que mais poderia mudar?
Primeiramente, olhar para as relações com a região não sob o prisma da guerra internacional contra o terrorismo, que foi imposta como uma agenda de Washington. Segundo, reconhecer que a chamada guerra contra as drogas tem de ser conduzida de outra forma, com mais ênfase em redução de danos e redução da demanda. Temos de reconhecer também que muitas das fontes do problema vêm dos Estados Unidos. O contrabando de armas de pequeno porte é um exemplo. Precisamos ainda resolver nossos problemas domésticos. O presidente Obama, em sua visita ao México, deixou claro que tem essa mesma visão, o que foi muito bem recebido. Já começamos a ver uma mudança no relacionamento com Cuba, abandonando o objetivo primário de troca de regime e nos concentrando em reconstruir a confiança. Trabalha-se no sentido de uma relação pautada por uma cooperação pragmática.

"O Congresso brasileiro, às vezes, é difícil de entender. Seus integrantes trocam de partido frequentemente, volta e meia alguns deles estão sob investigação"

O Brasil deveria ser mais efetivo na contenção do ímpeto de Hugo Chávez?
O Brasil, como qualquer outro país, tem de perseguir boas políticas e relações internacionais, em seu próprio interesse. Não deve ser instrumento de ninguém. O Brasil faz fronteira com vários países, historicamente tem relações pacíficas e produtivas com os mais diferentes vizinhos. Acho que faz sentido manter relações saudáveis com realidades tão diversas como Bolívia e Venezuela, usando sua influência para se certificar de que não haja explosões de violência na região. Tenho certeza de que o crescimento da tensão entre Colômbia e Venezuela é uma questão na qual o Brasil pode ter um papel construtivo. O país tem importância não apenas regional, mas global.

A iminente visita de Ahmadinejad, presidente do Irã, ao Brasil pode arranhar nossa imagem no exterior?
Bem, não sei exatamente o que vai acontecer com essa visita. Alguns dos comentários feitos sobre o Irã são difíceis de entender e interpretar. Se estou bem informado, quando o resultado das eleições no Irã foi contestado, com acusações de fraude, alguns representantes da diplomacia brasileira, e parece que o próprio presidente, disseram algo do tipo "é como com times de futebol, quem perde reclama das regras".

Foi isso mesmo.
Então essa atitude brasileira é um desafio à razão. Não parece uma atitude de uma diplomacia séria e bem informada. Esse tipo de declaração não combina com a reputação de análise e julgamento equilibrado que diplomatas brasileiros e figuras políticas brasileiras, incluindo Lula, construíram nos últimos anos. Talvez essa visita seja uma boa oportunidade para esclarecer essas questões. O Irã faz parte de uma série de importantes questões internacionais, e talvez o Brasil tenha um papel positivo a desempenhar nesse sentido.

O Senado brasileiro está para aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul. É uma decisão acertada?
Se o objetivo for fortalecer a integração regional, seria mais efetivo aprofundar as relações já existentes entre os atuais parceiros do que promover uma abertura rápida a novos parceiros. Mas pode ser que o objetivo principal tenha sido produzir repercussões comerciais favoráveis a empresas brasileiras com negócios na Venezuela. Então, tudo depende realmente dos objetivos. Não acho que, como instituição, o Mercosul possa ser fortalecido pelo envolvimento de Chávez. O que pode acabar ocorrendo é que, como na maioria das situações em que se meteu, Chávez divida e enfraqueça a organização em vez de fortalecê-la.

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