Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 21, 2009

Política econômica O namoro com a heterodoxia

Os riscos de desmontar o relógio

Ao mexer nas molas vitais da estabilidade, a equipe econômica flerta
com o experimentalismo, o que evitou fazer nos sete anos do governo Lula


Giuliano Guandalini


Em sete anos de Lula no Planalto, as molas mestras da política econômica funcionaram exatamente como foram deixadas pelo governo anterior. Foi uma prova de maturidade que trouxe grandes benefícios para a economia brasileira e deu estabilidade ao governo Lula. Preservou-se o regime de câmbio flutuante; o controle da inflação continuou como prioridade do Banco Central, o BC, e a responsabilidade fiscal foi conservada com a manutenção dos superávits primários. De negativo, registre-se que as despesas com o inchaço da máquina estatal, salário dos funcionários e pensão dos aposentados – os "gastos correntes" – seguiram sua trajetória de alta. Mas isso também ocorreu no governo passado. Essa maneira de conduzir a política econômica é às vezes chamada de "receita ortodoxa", o que incomoda sobremaneira os radicais petistas. Mas, goste-se ou não, deve-se à ortodoxia o fato de a economia brasileira passar por seu melhor momento em trinta anos. Agora, quando o governo Lula caminha para seu último ano, a comichão experimentalista começa a se tornar irresistível. Como colocou admiravelmente um economista: "Eles mexeram na casa toda, mas até agora não tinham tido coragem de desmontar o relógio do vovô, pois não saberiam remontá-lo".

A coragem parece ter aparecido. A gastança governamental voltou a crescer numa velocidade preocupante. O pensamento mágico começou a aparecer no discurso de autoridades antes fortemente ancoradas no realismo e na racionalidade. O exemplo mais extravagante veio de Guido Mantega, ministro da Fazenda. Na semana passada, ele disse que com o câmbio a 2,60 "venceríamos a todos". Mantega se referia ao fato, inegável, de que com a cotação do dólar naquele patamar as exportações brasileiras seriam mais competitivas no mercado internacional, pois, com o mesmo volume de produtos embarcados, as empresas nacionais embolsariam quase 50% a mais em reais do que agora que o dólar está cotado a 1,72 real. Mas como elevar a cotação do dólar até 2,60 reais e mantê-la no ponto ideal para os exportadores se o Brasil trabalha com o regime de câmbio flutuante? Como o ministro da Fazenda é a autoridade máxima da economia, o discurso de Mantega não pode ser apenas um comentário, a expressão de um desejo. Pelo que se depreende da animação do ministro, ele está falando em fixar o câmbio. Fazer uma mudança desse tipo em um dos tripés da estabilidade econômica é uma atitude bem mais radical do que, digamos, parar de comer carne vermelha.

"Existem fatores estruturais que empurram a cotação do dólar para baixo", diz o economista José Júlio Senna, sócio da MCM Consultores. Os principais são, primeiro, a gastança desenfreada do governo e a recuperação do setor privado após o impacto da crise. Nesse contexto, fixar artificialmente o câmbio em um patamar favorável a um setor da economia, no caso os exportadores, tem um custo para todos os demais brasileiros. Com John Maynard Keynes e Adam Smith, o brasileiro Celso Furtado forma a trinca dos economistas que são mais citados do que lidos. Em sua Formação Econômica do Brasil, que recentemente mereceu da Companhia das Letras cuidadosa reedição comemorativa dos cinquenta anos, Furtado explica com muita clareza quem perde com as mexidas artificiais no câmbio: "...o mecanismo pelo qual a economia corrigia o desequilíbrio externo – o reajustamento da taxa cambial – possibilitava a transferência do prejuízo para a grande massa consumidora".

O que significaria no Brasil de hoje um reajustamento do câmbio para corrigir um desequilíbrio externo? Significaria repassar o custo da operação para a grande massa consumidora brasileira na forma do mais cruel dos impostos, a inflação. "O Brasil voltou a crescer rapidamente, e isso embute pressões inflacionárias. Para conter essas pressões, o BC aperta a política monetária, o que significa valorizar ainda mais o real", explica Senna. Ou seja, se o BC não agir, o dólar poderá até subir, mas o corolário seria a volta da inflação. Darwin Dib, economista do Itaú Unibanco, lembra que no regime de câmbio flutuante as cotações se ajustam de maneira a acomodar as forças externas e internas exercidas sobre a economia. Elas são um reflexo da realidade. No caso atual brasileiro, a valorização do real reflete a aposta dos investidores internacionais na vitalidade da economia brasileira, que está pronta para crescer em ritmo superior ao dos países ricos e de outros emergentes.

Existe outra maneira de minorar o desequilíbrio externo sem fixar artificialmente o valor do dólar? Sim. Obrigar o governo, como toda boa dona de casa, a gastar menos sem diminuir a qualidade dos serviços prestados e, assim, reduzir os impostos, devolvendo a competitividade aos exportadores. Na China, os impostos representam 18% do PIB, metade do que é pago aqui. Parafraseando Mantega: "Com uma carga tributária de 18% do PIB, venceríamos a todos".


Os males da gastança

RESSACA ECONÔMICA
Espanhóis fazem fila em busca de emprego: recessão e aumento
de impostos

O montante de dinheiro despendido pelos tesouros nacionais salvou o mundo de uma recessão profunda. Mas os efeitos danosos das gigantescas injeções de liquidez começam a se manifestar. Governos não produzem um centavo. Todo o dinheiro que despejaram nos mercados teve de ser tomado por empréstimo dos contribuintes, o que aumentou brutalmente a dívida dos países. Os Estados Unidos apresentaram seu pior resultado fiscal da história. O déficit (ou seja, o total gasto além das receitas) ultrapassou pela primeira vez a barreira de 1 trilhão de dólares. Como resultado, a dívida pública interna também cresceu. Em 2009, ela deve chegar a 13 trilhões de dólares, o equivalente a 90% do PIB americano. Os efeitos disso são perspectiva de juros mais elevados para financiar a dívida e crescimento econômico mais lento nos próximos anos.

Ao redor do mundo, a situação não é diferente. Passado o pior da crise, as equipes econômicas buscam enfrentar os problemas que se viram obrigadas a criar, ainda sob a pressão de dar continuidade à política de incentivos fiscais. A Espanha, por exemplo, optou por elevar o imposto sobre mercadorias e serviços, mesmo sem ter conseguido ainda deixar a recessão para trás. A Irlanda, outro país duramente atingido pela debacle financeira, aumentou a alíquota de imposto de renda de 41% para 46%, com vistas a taxar os mais ricos. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, o movimento tem sido semelhante. Dá-se como certo que esses países precisarão aumentar os impostos, sobretudo porque haverá uma necessidade crescente de recursos para custear a previdência e o sistema de saúde.

Outra boa medida seria estabelecer o compromisso com a diminuição futura dos gastos públicos não essenciais – na contramão do que tem feito o Brasil. Os brasileiros já sentiram na pele as consequências de um descalabro fiscal. Na década de 80, a dificuldade em diminuir as despesas diante da escalada inflacionária e da dívida externa motivou o então recém-eleito presidente Tancredo Neves a dizer: "É proibido gastar". Não deu certo, e veio a hiperinflação. Cedo ou tarde, os governos terão de reencontrar a austeridade.

Luís Guilherme Barrucho

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