Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 07, 2009

O Seminarista, de Rubem Fonseca

Letras latinas, crimes cariocas

Embora o enredo policial de seu novo romance seja capenga,
Rubem Fonseca se mantém como o cronista mais perspicaz de uma
cidade onde bandidagem e civilização convivem promiscuamente


Jerônimo Teixeira

Zeca Fonseca
SÊNECA E A PISTOLA GLOCK
Rubem Fonseca: seu assassino charmoso é um retrato do Rio

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Mineiro de nascimento, Rubem Fonseca, de 84 anos, é o grande cronista da brutalidade do Rio de Janeiro. A imagem do cadáver desovado por traficantes cariocas em um carrinho de supermercado, que tanto chocou o Brasil no mês passado, poderia ter saído das páginas de Feliz Ano Novo ou O Cobrador, obras que o autor publicou nos anos 70. Seus contos e romances foram pioneiros em abandonar a figura romântica do malandro para substituí-lo pelo marginal – violento, amoral, sanguinário. EmO Seminarista (Agir; 184 páginas; 36,90 reais), seu 11º romance (que também será vendido pelo iPhone e pelo Kindle), o cenário ainda é o mesmo Rio sujo e bandido dos livros anteriores, no qual a grã-finagem convive promiscuamente com traficantes e contrabandistas. O protagonista, porém, deseja emendar seus modos: José é um assassino de aluguel que decide aposentar sua pistola Glock e levar uma vida pacífica ao lado de Kirsten, uma bela alemã radicada no Rio.

Com assassinatos de motivação imprecisa (há uma disputa por um CD com informações que poderiam incriminar um figurão, mas tudo fica mal explicado), o enredo policial de O Seminaristaé meio desconjuntado. O que sustenta o livro é o herói típico de romance noir: durão, cínico, mas com uma queda sentimental por mulheres magras de seios pequenos. Ex-seminarista, José gosta de citar Cícero e Sêneca, no latim original, entre um crime e outro. E é claro que o passado que ele deseja superar cobrará seu tributo, levando-o a novos, piores crimes – incluindo mutilações e torturas de um barbarismo medieval. Nestes dias em que o Rio ocupa o noticiário primeiro como a sede da Olimpíada de 2016 e logo em seguida como a cidade sem lei onde a bandidagem derruba até helicóptero, Rubem Fonseca compôs, com seu ex-seminarista matador, mais um retrato sem retoques da cidade: charmosa, capaz de encantar os estrangeiros, mas com instintos ruins que não demoram a aflorar.

Medievo carioca

"Com o alicate eu puxei a língua para fora o máximo possível. Eu não sabia que uma língua puxada com força crescia daquele jeito, parecia-me ter uns trinta centímetros. Foi fácil decepá-la com a afiada faca da cozinha. (...) Senti um grande prazer ao notar o seu olhar aterrorizado. Apanhei o espelho e coloquei em frente ao rosto dele. ‘Olha, olha, você vai poder, pela última vez, intueri se in speculo, olhar-se no espelho. Porque vou arrancar os seus olhos."

Trecho de O Seminarista



LIVROS

O SEMINARISTA, de RUBEM FONSECA

Eles me pegaram porque dei mole.

Foi assim: eu me preparava para sair de casa para dar uma volta, ver se achava uma pista do Sangue de Boi e, quando peguei a Glock, Kirsten perguntou:

“Você vai levar essa coisa? Precisa?”

“Está bem”, eu disse colocando a pistola de volta no armário de cuecas.

Eu havia acabado de sair do sebo da rua da Quitanda, onde comprara uma edição de poemas da Edna St. Vincent Millay, e caminhava lendo, embevecido, pela Primeiro de Março, quando subitamente colocaram um capuz na minha cabeça e mãos fortes e hábeis me jogaram na mala de um carro. Os caras deviam ser muito audaciosos para fazer uma coisa dessas numa rua de movimento durante o dia. Tudo durou alguns segundos. Senti o carro andando em alta velocidade. Quando parou, me tiraram da mala, mas mantiveram o capuz cobrindo a minha cabeça.

“Anda, dá o serviço”, uma voz disse.

“Que serviço?”

“O que foi que o cara cheio de joias te contou?”

“Que cara?”

“O cara que você matou.”

“Quando foi isso?”

“Três meses atrás. Um sujeito cheio de anéis, pulseiras, até brincos.”

“Ah... sei. Ele não contou nada. Dei um tiro na cabeça dele, um só, como sempre faço, quer dizer, fazia, eu abandonei o métier. Não sei de nada. No dia seguinte nem li os jornais, exatamente para não saber nada sobre o freguês. Esse é o meu modus operandi.”

“Anda, diz logo o que ele lhe contou.”

Recebi um golpe violento no rosto. Senti o sangue escorrendo pelo queixo. Em seguida golpearam os meus ouvidos, me deixando surdo por alguns momentos. Outro golpe, agora na boca, o cara devia estar usando um soco inglês, pude sentir que um dente fora quebrado e estava sobre a minha língua.

“Vá se foder”, eu disse, sentindo o dente quebrado na boca cheia de sangue.

Alguém disse alguma coisa que não entendi, meus ouvidos estavam bloqueados. Eu estava com as duas mãos amarradas atrás das costas. Tiraram as minhas calças e a minha cueca. Pouco depois senti um choque elétrico forte nos meus testículos, que causou uma dor insuportável.

Houve uma ocasião em que eles pararam por alguns momentos. Confabulavam e eu, avidamente, prestava atenção ao que diziam: o que era melhor, peidar ou cagar? Um dizia que gostava de peidar e de sentir o cheiro do seu peido, principalmente quando estava deitado debaixo de uma coberta e então ele levantava a coberta e sentia o que provavelmente considerava um doce aroma invadir suas narinas. O outro preferia fazer cocô, dizia que não havia nada no mundo melhor do que cagar.

Então ouvi uma voz familiar dizer: “Parem com essa conversa cretina, façam o seu trabalho.”

Logo voltaram a dar choques nos meus colhões.

“Anda, seu merda, abre logo o bico.”

Outro choque, outra dor lancinante.

“Está bem, está bem, digo tudo que vocês quiserem saber.”

Não fora a dor que me fizera ceder, não ligo para a dor, sou um estoico. Foi o medo que aqueles choques elétricos me fizessem ficar broxa. Ficar broxa era pior do que ficar cego, a segunda pior desgraça que podia acontecer comigo.

“Então fala, seu merda.”

“Vocês me dizem o que eu tenho que falar e eu falo. Eu falo tudo o que vocês quiserem que eu fale. Mas vocês têm que me dizer o que é... o que foi que o cara que eu executei me disse. O que vocês me disserem que ele disse, eu digo.”

Achei que esse era um bom argumento, que convenceria os meus carrascos, mas logo senti um choque ainda mais forte nos meus colhões.

“Fala logo, seu filho da puta.”

“Eu falo”, disse com voz sumida, “falo, mas não sei o que, caralho...”

Outro choque, ainda mais violento. Eu estava começando a desfalecer.

“Chega, ele não sabe nada, o cara está morrendo.” Era novamente a voz familiar, sussurrando ao longe. Era o Sangue de Boi querendo me livrar daquele sofrimento.

Outra voz: “Vamos desovar ele no lixão.”

Foi última coisa que ouvi. Quando voltei a ter consciência, abrindo os olhos e vendo estrelas, era de noite. Eu estava jogado no lixão de uma favela, no meio de restos de comida, merda, lixos variados, coisas putrefatas, um fedor nauseabundo. Ao meu lado um presunto, um negro grande com o rosto estourado de porradas e o corpo cheio de furos de bala. Tenho que dar o fora daqui, pensei. Mas não consegui ficar de pé e fui me arrastando, me arrastando como um verme. Então me lembrei de uma frase que li num dos livros do Bruce Chatwin, sobre a importância da postura ereta, a postura ereta, ainda mais do que o desenvolvimento da linguagem, ainda mais do que a presença do superego, entre esses atributos do homem que o elevaram acima do reino animal, a postura ereta era o mais importante. Anda, seu filho da puta, eu disse para mim, fica em pé, ereto, seu merda, ereto.

Então, com grande esforço me ajoelhei, depois me ergui lentamente, ficando em pé. Ereto. Poder sair do lixo sem rastejar me deu uma das maiores alegrias da minha vida. Fui andando, cambaleando, mas ereto, dando passos lentos, mas ereto, como um homem deve caminhar, ereto.

Então tudo escureceu.


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