Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 21, 2009

O sucesso do R&B no Brasil

O soul deu samba

A música negra americana cresce nas rádios e paradas brasileiras,
tomando o lugar que já foi do rock. A influência do R&B de cantoras
como Rihanna e Beyoncé, pasme, encontra-se até no pagode


Sérgio Martins


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Halo é hoje a canção mais executada nas rádios brasileiras. Baladão derramado, cuja letra fala de uma moçoila que compara o amado a um anjo, a música ficou dezenove semanas em primeiro lugar nas paradas nacionais e tocou 20 000 vezes nas emissoras de todo o país, segundo levantamento da Crowley Broadcast Analysis do Brasil, que mede a audiência das rádios. A música catapultou as vendas de sua intérprete, a americana Beyoncé. I Am... Sasha Fierce, seu último disco, vendeu 130 000 cópias no Brasil, número superior ao dos últimos lançamentos de estrelas nativas como Ivete Sangalo e Ana Carolina. Halo é um R&B – um derivado do soul, a principal vertente da música negra americana – e seu êxito mostra uma mudança no gosto dos ouvintes brasileiros. Há dez anos, seus gêneros prediletos eram o sertanejo, a axé music, o samba e o rock. Os três primeiros ainda reinam, mas o rock foi substituído, com folga, pelo R&B. Beyoncé tem outras duas músicas entre as mais tocadas .– If I Were a Boy e Single Ladies .–, e seus companheiros de parada são os artistas de música negra como Rihanna, Mariah Carey e Chris Brown. Mesmo cantoras de axé como Ivete e Claudia Leitte estão fazendo canções calcadas na batida dolente do soul contemporâneo. As branquelas inglesas Joss Stone e Amy Winehouse, estrelas do neo-soul, gênero saudosista que busca reconstituir a sonoridade da música negra dos anos 60, não tocam tanto nas rádios, mas vendem muitos discos no Brasil. Joss, que na semana passada fez show no Rio, em São Paulo e Curitiba para promover o recém-lançado Colour Me Free, já vendeu 152 000 cópias de seus três discos anteriores. Os dois álbuns de Amy, cuja canção Rehab foi uma das mais tocadas de 2008, estão na marca de 505 000 unidades vendidas. É uma quantidade superior à dos dois últimos discos de Marisa Monte, a maior artista de MPB contemporânea. A soul music deu samba – e dos bons.

"Soul" traduz-se literalmente como "alma". Mas o vocábulo ficou associado à cultura negra americana (além da música, existe também uma culinária soul). A soul music começou a surgir em meados dos anos 50, da mistura do blues e da música gospel. A princípio, foi batizada como rhythm’n’blues e suas letras tinham conotação sexual. Assimilado (e sanitizado) por artistas brancos como Elvis Presley, o rhythm’n’blues virou o rock’n’roll. Em uma evolução paralela do gênero (veja os quadros: A alma do negócio e A evolução do embalo), os artistas negros carregaram ainda mais na influência da música gospel – em especial o "canto e resposta" dos pastores e os malabarismos vocais – e suavizaram as letras. Nascia a soul music. Nos anos 60, a novidade foi capitaneada pela Motown, gravadora criada pelo ex-boxeador Berry Gordy Jr. O empresário estabeleceu regras rígidas para garantir a comercialização eficiente de suas produções. As canções não podiam ter mais do que três minutos, para facilitar a execução nas rádios. Temas políticos e raciais eram proibidos, para não espantar o público branco. Com esses parâmetros e um bocado de ritmo, a Motown impulsionou astros como Stevie Wonder, Marvin Gaye, Diana Ross e Michael Jackson e se tornou a cara da música pop dos Estados Unidos.

Com o tempo, a soul music desdobrou-se em numerosos estilos e vertentes, como o funk, o disco, o rap e o hip hop soul. Atualmente, predominam duas escolas, o R&B e o neo-soul, ambas surgidas em meados dos anos 90. O R&B combina o ritmo da Motown com batidas eletrônicas do rap, mantendo os vocais agudos que fizeram a fama de divas como Diana Ross (Mariah Carey e Whitney Houston estão entre as cantoras mais exageradas do gênero). As letras são melosas ou carregadas de insinuações sexuais. Ex-vocalista do grupo Destiny’s Child que começou sua carreira-solo em 2003, Beyoncé é hoje a grande estrela do R&B. Seu disco de estreia, Dangerously in Love, calhou de sair em um período no qual Mariah e Whitney passavam por infernos profissionais e pessoais. Beyoncé combinou essa sorte com um bom planejamento de mercado. Assessorada pelo pai e casada com o rapper Jay-Z, ela não é o tipo de artista que se arrisca. Seus três discos trazem sempre o mesmo híbrido seguro de soul e batidas de rap. Sasha Fierce foi anunciado como a versão "selvagem" de Beyoncé. Balela: soa exatamente igual aos seus trabalhos anteriores.

Com menos ritmos eletrônicos e mais instrumentos antigões – órgãos Hammond e guitarras com pedal de efeito wah wah –, o neo-soul retomou a música negra dos anos 60. Seus primeiros representantes foram os cantores Maxwell, D’Angelo e Jill Scott. Mas, como no R&B, foram as mulheres que consagraram o gênero nas paradas. Em 2003, o mesmo ano em que Beyoncé lançava seu primeiro disco-solo, a inglesa Joss Stone estreava com The Soul Sessions. Ela tinha 16 anos e impressionou a crítica e o público ao gravar um álbum com canções dos anos 60 e 70. "Eu impulsionei o mercado de neo-soul", vangloria-se Joss. O sucesso dela foi seguido pelo aparecimento de diversas artistas inspiradas pela sonoridade clássica da soul music – caso de Amy Winehouse, Sharon Jones e Adele, as duas últimas ainda inéditas no Brasil.

No Brasil, a soul music viveu seus períodos de maior sucesso com Roberto Carlos (que se dedicou ao gênero em seus discos gravados no fim dos anos 60 e início dos 70) e Tim Maia. Mas a atual popularidade do gênero tem pouco a ver com essa tradição. O soul brasileiro tomou caminhos enviesados: circulou pelos grupos de samba de São Paulo e pela música evangélica. O que os críticos, nos anos 90, batizaram derrisoriamente de "pagode mauricinho" nada mais era que uma tentativa de adaptar o R&B americano para o mundo do samba. "A gente ouvia Cartola, mas também era fã de Michael Jackson", diz Péricles Faria, vocalista do Exaltasamba, um dos mais populares grupos de samba do país. O figurino colorido, a dança coreografada, as baladas românticas e a interpretação derramada dos pagodeiros foram características decalcadas do novo soul americano. Nem sempre a mistura é feliz: a choradeira de um Alexandre Pires ou de um Netinho (ex-Negritude Junior e atual vereador por São Paulo) configura um duplo insulto – ao samba e ao soul. Já as igrejas evangélicas brasileiras mantinham contato com os selos de música gospel americanos. Estes, por seu turno, tinham em seu cast muitos artistas de música negra que se lançaram no mercado religioso – caso de Philip Bailey, cantor do grupo funk Earth, Wind & Fire. Não é de admirar, portanto, que a cantora Vanessa Jackson (que ganhou a primeira edição do Fama, programa da Rede Globo) e o cantor gospel Sérgio Saas tenham sido influenciados pelo R&B. É mais um questão de fé do que de influência artística.

Hoje, entre os poucos cultores brasileiros do soul mais, digamos, "de raiz" está um sobrinho de Tim Maia, o cantor Ed Motta. Seu disco de estreia, Ed Motta e Conexão Japeri, de 1988, ainda é a bíblia para os artistas brasileiros de soul music. "Para quem, como eu, não gosta do funk eletrônico, o surgimento do Ed foi um oásis", diz o cantor e produtor Silvio Silva, o Silvera. Motta, no entanto, alternou discos dançantes com trabalhos que flertavam com o jazz e o samba. Em Piquenique, que chega nesta semana às lojas, ele faz as pazes com as pistas de dança. Produzido por Silvera, é um álbum calcado na soul music, no funk e na disco. "Fazia tempo que eu devia um disco como esse aos meus fãs", diz Motta, que, por um certo período, até deixou de cantar nos shows seus sucessos mais embalados, como Manuel. Essa volta ao soul não poderia vir em época mais apropriada, como confirmam as paradas brasileiras.

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