"Quando alguém me fala em 'versão dos vencidos', sempre
temo que ele esteja em busca de uma justificativa moral para
cortar o meu pescoço, mandar-me para o paredão ou jogar
um foguete no meu quintal"
As análises que faço no blog sobre a reação de Israel aos milhares de foguetes disparados pelo Hamas rendem bombardeios de protesto – e também centenas de manifestações de apoio, é certo. As críticas revelam um aspecto curioso: dada a certeza dos missivistas de que o articulista jamais condescenderia com os motivos dos terroristas do Hamas, cobram-lhe, então, que reconheça ao menos as "culpas de ambos os lados". Às centenas, exigem o que chamam de "meio-termo", "equilíbrio" e "isenção" – e isso significa que o querem moralmente comprometido "com o mais fraco". Os mais sagazes ousam dar aulas de como é que se faz: "Relatar a versão de todas as partes envolvidas, e o leitor que tire as suas conclusões". É o jornalismo entendido como uma vitrine de divergências para satisfação do voyeurismo ideológico. Entre os produtos expostos, deveria estar também o elogio ao terror, já que há consumidores que o desejam...
Há os que ensaiam voos de alcance filosófico com sotaque francês: sustentam que a realidade nada mais é do que um "discurso sobre a realidade". Assim, o que o pobre articulista toma como "verdade" seria tão-somente a narrativa mais influente ou mais bem construída. Como a história, asseveram, é contada pelos vencedores, convidam-no a prestar atenção à "versão dos vencidos". Pois é... Uma das "versões dos vencidos" que ganhou o mundo com ares de escândalo foi o bombardeio de uma escola da ONU na Faixa de Gaza, o que foi confirmado no dia 6 de janeiro pelas próprias Nações Unidas. Ironizei então: "Até parece que Israel, quando não tem o que fazer, bombardeia escolas para se distrair". Fui chamado de cruel e insensível ao drama palestino.
Quase um mês depois, na terça-feira da semana passada, 3 de fevereiro, veio o desmentido oficial da ONU: não, os israelenses não bombardearam a escola. A organização deixou que a mentira prosperasse por quase um mês. Era propaganda do Hamas. Como sabem, estou preparado para a possibilidade de o vencedor estar certo e de sua narrativa ser, de fato, a melhor. Ademais, quando alguém me fala em "versão dos vencidos", sempre temo que ele esteja em busca de uma justificativa moral para cortar o meu pescoço, mandar-me para o paredão ou jogar um foguete no meu quintal, para citar três práticas a que os humanistas influentes de diferentes épocas já recorreram na sua "luta histórica por justiça"... Ademais, quem disse que o oprimido está necessariamente certo ou tem a melhor solução? Acreditem: quase sempre está errado e tem a pior.
Mohammed Saber/Corbis/Latinstock |
O Hamas mostra os dentes "Será que o Irã deixaria de financiar o terrorismo se mantivesse relações amistosas com os Estados Unidos?" |
O que incomoda tanto nos meus textos sobre Israel – e, a rigor, sobre qualquer assunto? O fato de, em matéria de princípio, o autor não ter por hábito exercitar nem mesmo a dúvida decorosa, aquela cheia de verbos no futuro do pretérito – para não ofender as certezas do interlocutor/leitor. Há um misto de ditado e aforismo atribuído a um velho judeu da Galícia que ilustra bem a situação: "Quando alguém está 55% certo, isso é muito bom, e não há discussão. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, é uma grande sorte, ele que agradeça a Deus. Mas o que dizer sobre estar 75% certo? Os prudentes já acham isso suspeito. Bem, e sobre estar 100% certo? Quem quer que diga que está 100% certo é um fanático, um facínora, o pior tipo de velhaco". Não custa observar: é uma ironia com quem não tolera que o outro possa ter mais de 60% de certeza...
Durante um bom tempo, a convicção viverá dias de desprestígio, e a afirmação que não apelar a zonas de ambiguidade e teorias da incerteza, para afetar tolerância e paixão pela especulação intelectual, será tachada de radical – e o radicalismo, claro, deve ser monopólio dos nossos inimigos... Tudo nos será permitido, exceto ter algumas velhas certezas. Você mesmo, leitor, deve ficar atento à orientação moral máxima destes tempos: "A virtude está no meio" – ainda que esse "meio", de fato, tenha lado. Fuja se alguém o ameaçar com uma moeda: "Cara ou coroa?". Ele é um sabotador da virtude. Na praia, quando o sorveteiro lhe perguntar o sabor do picolé, pense no que você pode perder ao ser obrigado a fazer uma escolha. Opte pela incerteza e responda: "Qualquer um". Diante de um sorveteiro, do aborto, dos foguetes do Hamas, da eutanásia, da comida japonesa, da pena de morte, do pagode, do Bolero de Ravel ou da ditadura cubana, prefira a dúvida que faz a fama dos sensíveis à certeza que faz a má fama dos dogmáticos. Não seja um lobo da estepe. Não provoque os outros com suas convicções. Não seja desagradável!
Os arautos dessa Era da Incerteza Moral pretendem que Barack Obama seja o seu Messias. Ele seria a comprovação da falência dos valores cultivados pelos conservadores e reacionários ocidentais. É como se o novo presidente, em vez de eleito e fruto das melhores virtudes da democracia na América, tivesse sido imposto à população por alguma força superior, demiúrgica, que tivesse assaltado as muralhas da tradição. Até parece que Obama mudou os EUA para se eleger. De fato, o país que há, em contínua mudança, é que o elegeu. Ele é fruto da tradição democrática, não do seu rompimento.
Se o líder não pode responder pelas tolices que dizem a seu respeito, certas falas suas, no entanto, justiça seja feita, dão asas à imaginação doidivanas que se regozija com a eleição de um suposto "inimigo dos EUA", que viria cumprir uma profecia: oficiar as exéquias do Império Americano e suas... certezas. Quais falas? Aquelas em que procede a uma espécie de mea-culpa na tentativa de diálogo com os promotores do terrorismo. Obama, sem dúvida, é produto de uma mentalidade errada, mas muito influente e agora no topo do mundo, segundo a qual o Ocidente, hoje liderado pelos EUA, teria inventado os "vários Orientes" e pautado suas demandas e dissensões.
Não deixa de ser um traço de arrogância bem ocidental ignorar que os países islâmicos (e cada um à sua maneira) ou a Rússia, que não quer ser e não vai ser parte da Europa, têm a sua própria agenda. Ou será que o Irã deixaria de financiar o terrorismo do Hamas e do Hezbollah ou de tentar levar adiante seu programa nuclear se mantivesse relações amistosas com os EUA? Convenham: bastaria que fizesse isso, e as relações com os EUA seriam... amistosas! Obama, nesse particular, é só a expressão de uma tolerância equivocada e paternalista com o sectarismo: supõe que ele se defina por uma carência de razão, compreensão e diálogo, mais ou menos como se fosse a infância do pensamento. Vamos ver a que preço vai perceber que está errado. Os iranianos acabam de responder com um foguete às mãos estendidas dos EUA. É uma pena! A gente se apega aos aiatolás, e eles aprontam uma dessas...
Importa-me menos, no entanto, o que os "orientes" estão fazendo com as convicções deles do que o que o Ocidente faz com as suas. Ressurgem por aqui os teóricos do terrorismo e da violência como método. E começam a ser admitidos na academia, na imprensa e na sala de estar. Um deles é figura frequente no debate: Slavoj Zizek, sociólogo e filósofo esloveno, autor de vários livros traduzidos no Brasil e uma das referências mundiais da extrema esquerda. Ao resenhar um livro seu para O Estado de S. Paulo, Vladimir Safatle, professor de filosofia da Universidade de São Paulo, descobriu "a invenção do terror que emancipa", falou de uma "ação revolucionária" que não cabe nos "quadros normativos do humanismo" e defendeu a construção de "estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa". Ufa!!! Embora pareça que ele trata de gases abdominais, está falando dos terroristas, que deveriam, então, ser abrigados por "estruturas institucionais universalizantes".
E, assim, voltamos ao ponto de partida. Este escrevinhador nada tem contra a dúvida que busca a verdade. Mas está 100% convicto da superioridade moral e do valor universal da democracia. E não mudaria de ideia ainda que a maioria discordasse. A democracia é tão importante que, se preciso, tem de ser preservada até mesmo da vontade da... maioria! Mas fica para outro capítulo.