Os povos anglo-saxônicos se convenceram de
que é imprudente deixar o governo cuidar da moeda"
O título é uma mera provocação. Pela lei, somente brasileiros natos ou naturalizados podem ser diretores do BC. Além disso, ainda não amadurecemos a ponto de aceitar que um argentino da gema participe de decisões sobre os juros (Selic).
Não é assim na Inglaterra. Está em curso a escolha de um diretor externo para o Comitê de Política Monetária do banco central (equivalente ao nosso Copom, embora este não tenha diretores externos). A seleção caberá a uma consultoria privada, e não ao governo. O edital, publicado na The Economist (10/1/2009), diz que o candidato não precisa ser britânico. Pode ser, portanto, um francês.
Desde o século XIX, os servidores públicos britânicos são escolhidos basicamente por mérito. As indicações políticas, incluindo secretários e ministros de estado, somam pouco mais de 100. Nessa cultura, cuidar da estabilidade da moeda é tarefa de profissionais independentes. Vale a competência, e não a nacionalidade. Os povos anglo-saxônicos se convenceram de que é imprudente deixar o governo cuidar da moeda.
Quando a moeda era de ouro e prata, havia rei que raspava as bordas para dispor de mais recursos. Uma fraude. Por isso as moedas passaram a ter ranhuras, que hoje continuam por mera tradição. Na era do papel-moeda, a fraude é emitir dinheiro sem controle. A inflação resultante é um tributo ilegítimo e nefasto.
Os britânicos foram pioneiros em imaginar freios institucionais ao poder de emitir dinheiro. Em um texto publicado em 1824, o economista David Ricardo já alertava para o risco de abuso. Propôs que a prerrogativa coubesse a funcionários que só poderiam ser demitidos pelo Parlamento. Eles não poderiam "emprestar dinheiro ao governo nem estar, em nenhuma circunstância, sob seu controle ou sua influência".
Em 1913, John Maynard Keynes disse algo parecido perante a comissão que estudava a criação de um banco central na Índia. Para ele, o ideal seria que o banco "combinasse a responsabilidade máxima de governo com um elevado grau de independência".
A ideia vingou nos países desenvolvidos. No início, não havia lei garantindo a independência, a qual decorria da percepção, pelos governantes, de que a inflação reduzia sua popularidade. Eram poucos os casos de lei, como na Alemanha e nos Estados Unidos, mas virou regra no Tratado de Maastricht, de 1992, para os países que desejassem adotar o euro. Nos anos 90, a Inglaterra e muitas outras nações aprovaram leis específicas.
Estudo recente de Daron Acemoglu e outros (www.nber.org/papers/w14033) confirma que a independência do banco central decorre das instituições do país, incluídas as crenças da sociedade, e não do ordenamento jurídico. A lei vem para reforçar a credibilidade da política monetária, estabelecer regras de prestação de contas do banco central à sociedade e reforçar sua transparência e previsibilidade.
De fato, nos países em que as instituições são débeis, a independência legal não assegura a estabilidade de preços. O banco central de Zimbábue é independente por lei desde 1995, o que não evitou a hiperinflação que ora flagela a nação. O governo interfere e se financia com emissões de moeda. Até recentemente, o banco central venezuelano era independente. De nada adiantou. Há muitos outros exemplos na América Latina.
Boas instituições criam incentivos para que os governos apoiem políticas monetárias responsáveis conduzidas pelo banco central. A lei é importante para evitar a tentação de uso do banco em prol de ações "desenvolvimentistas" socialmente danosas. Essa realidade institucional chegou ao Brasil, como prova a preservação da autonomia do BC no governo Lula. Precisamos agora dar o passo final, o da lei.
Infelizmente, nem todos os políticos e líderes do setor privado entenderam a relevância da autonomia do BC para a estabilidade e o desenvolvimento. Ainda pedem ao presidente da República para mandar baixar a Selic. Tampouco se dão conta de que a lei criaria a obrigação de o banco prestar contas, hoje inexistente. Apesar das lições da história, muitos intelectuais defendem a subordinação do banco ao governo. Mesmo assim, a lógica, o debate e novas lideranças tendem a viabilizar a lei, cedo ou tarde.
Maílson da Nóbrega é economista