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O teórico comunista Antonio Gramsci (1891-1937) dizia que “o partido” deveria tomar, nas consciências, o lugar de um “imperativo categórico”, de modo que nada na política se fizesse fora dele. Até mesmo para se opor ao que ele chamava “Moderno Príncipe”, forçoso seria pertencer ao Moderno Príncipe.
Foi no que pensei ao ler hoje, no Globo Online, a crítica que Ali Kamel faz ao livro Em Brasília, 19 horas, de Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobras, publicado pela Editora Record. Fazendo, afinal de contas, jornalismo oficial numa empresa oficial, “Ego Gênio” se esforça para evidenciar que deixou a marca do seu “eu” — um “eu” que parece conjugar muitos verbos ao longo do livro.
Não o li ainda, mas lerei. Lerei e, dado o texto de Kamel, recomendo que vocês façam o mesmo. Quanto mais nos informarmos sobre as múltiplas formas de ser do lulo-petismo, melhor. Mais preparados estaremos para enfrentar o Moderno Príncipe. Leiam um trecho do texto de Kamel.
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Chapa-branca
Eugênio Bucci presidiu a Radiobrás do início do governo Lula até abril do ano passado, um período longo. Para fazer o balanço de seus anos à frente da estatal, acaba de lançar um livro, “Em Brasília, 19 horas, a guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula”. Em 292 páginas, Bucci tenta demonstrar que, em sua gestão, a Radiobrás procurou imprimir “uma direção apartidária, impessoal, para servir à sociedade, atendendo o direito à informação”. Em uma das muitas avaliações que faz de seu trabalho, ele declara: “Alinhada com essa tendência, a gestão da Radiobrás entre 2003 e 2007 procurou exercer até o limite as suas atribuições, mantendo a devida distância entre os interesses de governo e os critérios jornalísticos que pautavam a edição das notícias”.
Não posso concordar. A Radiobrás não foi diferente do que era nas gestões passadas. Ela cumpriu fielmente o decreto que define a sua missão: “Divulgar as realizações do governo federal nas áreas econômica, política e social e difundir para o exterior conhecimento adequado da realidade brasileira.” No livro, o próprio Bucci, depois de contar a história legal da empresa, conclui em relação a este decreto: “Não é nada maravilhoso, mas melhorou um pouco, e é o que está em vigor”.
Apesar disto, Bucci afirma por todo o livro que fez a Radiobrás produzir bom jornalismo, apartidário, ético, afastado da propaganda, com a única exceção do programa “Café com o presidente”. E, como prova, usa o artifício de revelar quatro ocasiões em que teria sofrido pressões contrárias à linha autônoma que diz ter seguido na Radiobrás. A primeira delas, ainda em 2003, foi uma reprimenda do presidente Lula, irritado porque a Radiobrás divulgara uma declaração de Nilmário Miranda, então ministro-chefe da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, segundo a qual o aumento do trabalho infantil naquele ano fora conseqüência do “arrocho econômico”. Depois, em junho de 2004, vieram dois bilhetes que José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil, enviara a Luiz Gushiken, que ocupava a chefia da Secretaria de Comunicação, a que a Radiobrás estava subordinada. No primeiro, Dirceu discorda de Bucci, que defendia o fim da obrigatoriedade da “Voz do Brasil”, e desabafa: “Já não basta a Radiobrás e sua ‘objetividade’, que na maioria das vezes significa um misto de ingenuidade e na prática mais uma emissora de ‘oposição’?” No segundo, Dirceu repete a reclamação, e pergunta: “Você tem acompanhado o conteúdo do noticiário da “Radiobrás?” Um ano depois, Ricardo Berzoini, então ministro da Previdência Social, reclamou com Gushiken de uma nota que a Radiobrás divulgara sobre uma paralisação de servidores. No bilhete, ele diz: “Tem coisas na Radiobrás que eu não entendo. Tudo bem que a agência não deva ser um ‘Diário Oficial’ ou ser submetida à censura prévia. Mas fazer propaganda de um movimento minoritário puxado pelo PSTU e PFL, claramente em oposição ao governo, e que apregoa mentiras sobre a política de RH de nosso governo, é demais para meu espírito democrático.” Em meio ao relato desses bilhetes, Bucci diz a seu favor que durante o escândalo do mensalão, a Agência Brasil, da Radiobrás, teria publicado 3500 “reportagens” sobre o assunto e que “não sofreu uma única acusação de sonegação de dados.”
Comecemos pelo fim. Como todos nós, jornalistas, estamos acostumados ao padrão chapa-branca da Radiobrás, não chega a surpreender que não tenha havido uma só acusação de sonegação de dados. Aceite Bucci ou não, jornalistas não julgam o trabalho da Radiobrás por este prisma, simplesmente porque ela não tem importância. Ninguém segue o noticiário da Radiobrás à cata de furos nem cobra dela que vigie o poder, ela que é subordinada ao poder. É preciso ressaltar também outro aspecto da questão. Se a intenção de Bucci era dar autonomia jornalística à Radiobrás, por que motivo não atuou no sentido de mudar o decreto que, ainda hoje, faz a empresa ser legalmente chapa-branca? Se o seu projeto era sincero, por que não propor mudanças legais que livrassem a estatal da influência de governos? Dizer que o decreto que rege as atividades da empresa “não é maravilhoso, mas melhorou” é expressar conformismo com o status quo. É falar de mudanças, mas sem o desejo real de implementá-las.
Sobre os bilhetes e a reprimenda do presidente, eles suscitam em primeiro lugar uma pergunta: se representavam uma pressão inaceitável, como agora quer fazer crer Bucci, por que ele os aceitou? Por que não denunciou na hora, por que não se demitiu? Por que ficou ali até abril de 2007? Só encontro duas respostas: ou Bucci foi enquadrado, e por isso ficou, ou os bilhetes foram tentativas vãs de pressão e, por isso, não deveriam ter sido revelados por quem serviu o governo calado durante cerca de 1600 dias. Eu fico com a primeira hipótese. O que os bilhetes revelam é uma guerra entre governismos, um mais chapa-branca do que o outro, mas todos chapa-branca. Aos olhos dos que acreditam num jornalismo livre, a Radiobrás continuou subserviente ao poder como sempre; aos olhos dos que têm alergia a jornalismo e sonham com medidas extremas (como censura prévia), o jornalismo dela, mesmo objetivamente subserviente, pode ter parecido “objetivo” ou “de oposição”. Isso não quer dizer que tenha sido uma coisa ou outra.
A questão fica ainda mais clara quando Bucci discute as “Cartas Críticas”, uma análise diária sobre mídia que Bernardo Kucinski, então assessor de Lula, escrevia para o presidente. Bucci se indignou com duas referências negativas de Kucinski à Radiobrás. A primeira coisa a notar é que a reação de Bucci foi imediata: ele, que se diz um democrata, tratou de propor o afastamento de seu crítico do Conselho da Radiobrás logo depois da primeira crítica, uma atitude típica do discurso autoritário que ele diz denunciar. A primeira manifestação de Kucinski foi em dezembro de 2004 e criticava a Radiobrás por não ter mandado alguém ao Haiti cobrir o envio de novas tropas brasileiras àquele país: “Se não desenvolvermos e não disseminarmos a nossa visão dos fatos, perderemos a batalha da informação”. Bucci, em vez de se orgulhar de não ter posto a Radiobrás a serviço do governo, esforça-se no livro para provar que a crítica era injusta, afirmando: “[Kucinski] escondia de seus leitores a grande cobertura realizada por nós nos meses anteriores”. Bucci teve a mesma reação quando, seis meses depois, Kucinski, em um relatório enviado ao chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, criticou a hierarquização das manchetes na página da Agência Brasil e propôs uma nova redação para elas, bastante governista, para destacar “quatro pautas positivas para o governo”. Bucci entendeu que ele acusava a Radiobrás de omissão e, no livro, mais uma vez se esmera para provar que não houve omissão alguma, a Radiobrás dera todas as notícias reclamadas por Kucinski! Para provar o que diz, Bucci detalha todos os títulos. A leitura deles é constrangedora: “Ministro do trabalho toma posse prometendo lutar por salário mínimo”, “Lula diz que Marinho tem capacidade de negociar para defender os trabalhadores”, “Lula afirma que Berzoini volta à Câmara para ser um defensor do governo”, “Recuperação do salário mínimo é meta do novo ministro do Trabalho”, “Silas Rondeau descarta risco de apagão até 2009”, “Produção industrial cresce em todo o país” e “Lula anuncia nova etapa da reforma ministerial.”
Esse é o jornalismo “apartidário e impessoal” que Bucci diz ter praticado na Radiobrás. Na verdade, esses títulos demonstram o que eu quis dizer ao falar em guerra de governismos.
Bucci, porém, se apega num ponto da crítica de Kucinski para provar o seu apartidarismo: o assessor de Lula reclamara também do título da nota “CGU: prejuízo dos Correios passa de R$ 54 milhões”. Para mostrar que Lula investigava a denúncia de corrupção, Kucinski preferia a palavra “Governo” em vez de “CGU”, uma sigla que o povão não conhece. Trata-se, mais uma vez, de uma discussão semântica entre governistas, pois, nos dois títulos, a intenção é a mesma: mostrar que o governo agia. Bucci, feliz com a oportunidade que a crítica de Kucinski lhe dá, garante que a Agência Brasil cobriu, intensamente, tudo o que se referia às CPIs e às denúncias de corrupção. Mas, acrescenta, “sem se dobrar nem ao governismo, nem ao sensacionalismo”. Pelos títulos que citei anteriormente, dá exatamente para se ter uma noção do que, para ele, esse caminho do meio representava.
Não, a Radiobrás cumpriu sempre as suas atribuições de “divulgar as realizações do governo federal”, como ainda manda o decreto que rege suas atividades. Embora o propósito do livro seja provar o contrário, aqui e ali Bucci deixa os fatos à mostra. É chocante o relato que ele faz de 2006. Ele diz com todas as letras: “Nos cinco primeiros meses do ano eleitoral de 2006, o presidente Lula pôs o pé no avião e girou o país de um lado para o outro, dobrando o número de viagens em relação ao mesmo período do ano anterior: viajou 65 vezes, para 53 destinos diferentes, contra 32 vezes e 27 destinos nos cinco primeiros meses de 2005.” Com atividade eleitoral tão frenética, Bucci conta que o dinheiro acabou, ficaram “lisos, sem um tostão”. O que fez Bucci? Esforçou-se pessoalmente, de maneira intensa, para liberação de mais recursos. No fim, conseguiu mais R$ 200 mil, dinheiro que “daria para mais um mês, se tanto.” No livro, ele conta: “Assim foi: de gota em gota, de mês em mês, um sufoco em prestações.” Novamente pergunto: é assim que deve agir alguém preocupado com uma gestão “apartidária e impessoal”?Jamais. O certo era esclarecer a quem de direito que atividades de presidente são atividades de presidente e que campanha eleitoral é campanha eleitoral. Uma coisa deve ser coberta pela Radiobrás, a outra, não.
Para ler a íntegra no Globo On Line, clique aqui