A ONU descobriu tardiamente o grave problema da crise de alimentos, e fica batendo cabeça atrás de uma solução. Ora a culpa é dos biocombustíveis em geral; ora uma força-tarefa resolveria o problema. Há soluções: o mundo precisa produzir mais alimentos; o comércio de produtos agrícolas tem que ser mais livre; os Estados Unidos precisam mudar a matéria-prima do seu etanol. A fome não começou ontem. Na verdade, está havendo uma queda do percentual de pessoas que passam fome no mundo. O que houve agora foi um salto nos preços de alguns alimentos básicos. A ONU está tão confusa sobre essa crise que o mesmo Jean Ziegler, relator para o tema, que manda uma carta para o Brasil elogiando o nosso programa de biocombustível, acusa uma semana depois o biocombustível de ser o culpado de tudo. A idéia de produzir combustível de origem vegetal é boa. Por enquanto, no atual estágio da tecnologia, não tem condições de substituir o combustível fóssil. Mas pode, dependendo do balanço de carbono de cada proposta, ser uma forma de mitigar os gases de efeito estufa. Os EUA fizeram a opção equivocada de usar a mesma matéria-prima que é base de alimentação das pessoas e com a qual se faz ração animal. Como é uma economia rica, dá um volume de subsídios tão grande que torna o produto competitivo, mas, ao mesmo tempo, deixou de fazer a conta do balanço energético do modelo. Gastam muita energia fóssil para produzir a energia de origem vegetal. Ambientalmente e economicamente, a opção pelo etanol de milho é um desastre. O lobby americano dificilmente permitirá uma mudança nessa insensatez. O Brasil tem uma história inteiramente diferente neste assunto: produz biocombustível há quase 40 anos, tem uma rede de distribuição nacional e metade do combustível automotivo usado vem da cana-de-açúcar. Está ampliando a sua produção de cana, de grãos, de fibras (algodão, celulose) e de proteína animal. Tudo ao mesmo tempo. E ainda tem espaço para isso. O presidente da Embrapa, Silvio Crestana, acha que o problema é conciliar agora as três necessidades: - A primeira é a econômica, a produção tem que gerar renda para dar lucro ao agricultor; a segunda é social, é preciso saber se a atividade está garantindo emprego de qualidade para o trabalhador; a terceira é ambiental, precisamos garantir que nada será feito em detrimento dos nossos biomas. A produção tem que ser vista dentro do balanço: carbono, água, floresta - diz ele. Fácil de dizer, difícil de fazer no Brasil em que a produção cresce prejudicando a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado e até a magra Mata Atlântica. - Só que o mercado está estabelecendo novas condições e novas regras, e o Brasil tem que aceitar. E se não aceitar, corre riscos, como o de perder uma de suas grandes riquezas: a água. Precisar o Brasil não precisa ameaçar bioma algum. Mas basta uma pessoa falar que é preciso aumentar a produção para aparecer alguém com a visão tosca de um Blairo Maggi propondo, como propôs, "vamos desmatar". O pior é que Maggi falou isso ao mesmo tempo em que apresentava uma proposta de zoneamento econômico ecológico considerada boa por ambientalistas. É mais forte que ele. É atávico. O Brasil cresceu destruindo. Quem duvida deve ler - ou reler - o insuperável "A ferro e fogo", de Warren Dean, que mostra como foi destruída a Mata Atlântica. Uma destruição que não gerou riqueza só porque este país tem empresários cuja palavra de ordem foi aquela vocalizada por Maggi: "Vamos desmatar." Precisar, não precisa. Os dados são impressionantes. - O número mais conservador é que o Brasil ocupa 200 milhões de hectares com pastagens. Como essa forma de pecuária é improdutiva, você pode ter o mesmo rebanho usando metade dessa terra para agricultura. Sendo mais conservadores e calculando que, no espaço ocupado por 1 boi, pode ficar 1,5 boi: seriam liberados 50 milhões de hectares para a agricultura. Isso significa que o Brasil pode dobrar a área que ocupa para produzir 140 milhões de toneladas de grãos - calcula Crestana. O Brasil tem outro problema: os lobistas dos subsídios. Apesar da alta produtividade e de todas as vantagens competitivas, o produtor, a cada nova crise, apresenta a conta da dívida ao governo. Aí fica a dúvida: se somos tão competitivos, se essa é a nossa vocação, por que tem que custar tão caro para o Tesouro? Na área social, a agricultura brasileira tem a mesma contradição: um empregador moderno convive com um empregador arcaico; quase escravocrata. Às vezes, eles convivem na mesma pessoa jurídica, na mesma pessoa física. É moderno em São Paulo, e submete trabalhadores a uma situação degradante em áreas de fronteira. Se o Brasil perder a hora desta vez, será uma tragédia para o país e para o mundo. O Brasil pode aumentar a produção, deve aproveitar essa oportunidade e elevar a oferta de alimentos. Não resolverá o problema sozinho, mas será parte da solução. Porém os produtores brasileiros terão que levar a sério os que alertam sobre os riscos ao meio ambiente e a necessidade de proteger o trabalhador. Até hoje, foi possível o país manter essa relação íntima entre o moderno e o arcaico na lavoura brasileira. Mas agora é a hora da verdade. Cada um deve escolher seu lado. O trigo será guardado, o joio será posto fora. |