Acusado de reduzir a oferta de comida
no planeta, o etanol brasileiro estimula
o plantio de alimentos
Julia Duailibi
Dida Sampaio/AE |
Lula, porta-voz do biocombustível brasileiro: o problema está no álcool de milho produzido nos EUA |
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Até pouco tempo atrás, o Brasil só recebia elogios por seu revolucionário programa de uso do álcool feito de cana-de-açúcar para o abastecimento de carros. Não sem motivos. Especialistas viam o combustível verde como a salvação da lavoura num cenário de aquecimento global, de perspectiva de escassez dos combustíveis de origem fóssil e de instabilidade política nos países produtores de petróleo. Hoje, com a ajuda da tecnologia dos motores movidos a bicombustíveis, o consumo de etanol já é maior do que o de gasolina no país, algo que não ocorria desde os anos 80, no auge do Proálcool. De um mês para cá, no entanto, o jogo começou a se inverter. O etanol transformou-se no vilão do encarecimento mundial de alimentos. Isso porque, segundo seus críticos, o uso de terras férteis para produzi-lo reduz a área destinada às culturas tradicionais de grãos, como arroz e trigo. Essa suposição fez o relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, o suíço Jean Ziegler, classificar a produção de biocombustíveis de crime contra a humanidade, ataque reforçado por Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. Segundo Zoellick, enquanto alguns estão preocupados em encher o tanque de seus carros, "muitos ao redor do mundo se debatem para forrar o estômago, e isso fica mais difícil a cada dia".
A súbita ofensiva contra o etanol motivou uma forte e correta reação do governo brasileiro. Em discursos pronunciados na semana passada, o presidente Lula classificou as críticas de Ziegler e Zoellick de "falácias" abastecidas com motivos comerciais. Segundo Lula, o encarecimento dos alimentos deve-se, na verdade, aos subsídios agrícolas de americanos e europeus, "uma droga que entorpece e vicia seus próprios produtores", e o problema do álcool combustível se restringe ao etanol de milho produzido nos Estados Unidos. "Não é recomendável produzir álcool de milho, ainda mais quando esse milho é subsidiado. Seria muito mais lógico que os Estados Unidos fizessem parcerias com países da América Central e do Caribe para produzir uma parte do etanol de que os Estados Unidos precisam", disse o presidente. A gritaria do governo brasileiro tem razão de ser. Plantando cana-de-açúcar para produzir álcool em 1% de seus solos aráveis, o Brasil consegue produzir mais da metade de todo o combustível que necessita para abastecer os seus automóveis. Além disso, os canaviais vêm avançando principalmente sobre áreas degradadas de pastagem e não concorrem com a produção de alimentos. Os Estados Unidos, por outro lado, já consomem 4% de suas terras com o plantio do milho destinado à produção de álcool, o que não representa nem 2% do total de combustíveis usado pelos carros do país. Um hectare de milho plantado rende apenas 3 000 litros de etanol. Já com a cana, na mesma área chega-se a 7 500 litros de etanol.
A ironia maior, no entanto, é que, no Brasil, o avanço dos canaviais até ajuda a aumentar a produção de alimentos. Isso ocorre porque o plantio de cana-de-açúcar requer rotatividade de culturas. Assim, 15% das áreas de canaviais são renovadas com outras lavouras, como a de feijão e a de soja. "Com a cultura da cana avançando nas pastagens, a oferta de alimentos aumenta, e não diminui", diz o ex-ministro da agricultura Roberto Rodrigues. Tanto é assim que, neste ano, o país baterá um novo recorde na produção de grãos. De resto, o Brasil chega a utilizar 20% de suas áreas agricultáveis. Há muita terra a ser explorada, sem derrubar uma árvore de floresta nativa. Considerando-se ainda os ganhos de produtividade, o país poderia tranqüilamente multiplicar a produção de alimentos e etanol nos próximos anos, sem que uma cultura tenha de roubar o espaço das demais (veja o quadro). Nos Estados Unidos, no entanto, o produtor de milho recebe subsídio para fabricar biocombustível, o que despertou uma corrida entre os fazendeiros americanos. Resultado: o incentivo fez diminuir o espaço de outras plantações e aumentar o preço dos alimentos. A projeção é que, nos Estados Unidos, neste ano, 30% da produção de milho vire etanol, 170% a mais que há quatro anos. "Não podemos confundir as coisas e cair numa falsa polêmica. Existe assimetria entre oferta e demanda de alimentos no mundo, que é o que causa o aumento do preço da comida. Mas isso não tem nada a ver como o etanol brasileiro", afirma Roberto Rodrigues.
Juan Barreto/AFP |
O americano Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial: ele se preocupa com a fome dos pobres, mas não condena o subsídio dos ricos |
Felizmente, a despeito das críticas lá fora, a indústria de açúcar e álcool segue de vento em popa no Brasil. Apenas na semana passada, o país viu o anúncio de dois grandes negócios nesse setor. Na quinta-feira 24, a Cosan, maior produtora de álcool e açúcar do Brasil, divulgou a compra das operações da Esso no Brasil por cerca de 900 milhões de dólares. A empresa derrotou assim a Petrobras, que também estava de olho na Esso, e terá acesso a um importante canal distribuidor. Isso porque as usinas de álcool são proibidas de vender diretamente o combustível. Por lei, precisam utilizar as distribuidoras como intermediárias. "Esse negócio representa mais um passo na profissionalização do setor", afirma Luiz Henrique Sanchez, consultor na área de petróleo e energia. Ainda na semana passada, a gigante britânica de energia BP noticiou a compra de metade da Tropical Bioenergia, hoje pertencente aos grupos brasileiros Santelisa Vale e Maeda. A BP dá assim seu pontapé inicial na produção de etanol. Em outro negócio promissor, a Crystalsev, que comercializa álcool e açúcar no Brasil, informou que se associará à americana Amyris, empresa de biotecnologia do Vale do Silício, para produzir biodiesel no Brasil a partir de 2010.
Esses negócios retratam a fome do mundo corporativo pelo etanol brasileiro – que, ao contrário das críticas recentes, não ameaça a produção de alimentos. A causa do problema está em outro lugar. O mundo enriqueceu nos últimos anos, fazendo com que milhões de pessoas deixassem a miséria e passassem a se alimentar melhor. A produção de comida, porém, não avançou no mesmo ritmo, causando um descompasso entre a oferta e o consumo. A inflação fugiu do controle em vários países. O preço do trigo no mercado internacional já subiu 130% no último ano, o que levou a Argentina a proibir a exportação do produto – má notícia para o Brasil, pois 70% do trigo usado aqui vem do país vizinho. Mas o cereal mais demandado atualmente é o arroz, cujo preço subiu 60% em apenas três meses. Países como China, Vietnã, Camboja e Indonésia deixaram de exportá-lo. O Brasil cogita fazer o mesmo.
A tentativa de vincular o etanol à crise dos alimentos exemplifica o fardo político que o Brasil terá de carregar por ter se consolidado como maior exportador agrícola do mundo em desenvolvimento. Caberá ao governo brasileiro – e também aos empresários do setor – convencer o mundo de que, nessa história, o Brasil não é o vilão. É o ônus da liderança.