Bernardo Ajzenberg - ESCRITOR E JORNALISTA; No centenário da morte do escritor, o Cultura publicará no último domingo de cada mês depoimentos de artistas sobre sua relação com a obra do mestre da literatura nacional
Um rapaz de 19, 20 anos, estudante de Letras, muito curioso, me perguntou outro dia se eu tinha alguma edição "antiga" de Memórias Póstumas de Braz Cubas ou outras do mesmo autor. Queria ler aquela grafia sentindo aquele cheiro, tateando aquele papel velho e enrugado - para saber, disse ele, como era "o verdadeiro Machado de Assis". E, além disso, ter uma "visão panorâmica" de sua obra.
Fui atrás e arrumei um exemplar de 1946, nem tão antigo assim mas pelo menos bem anterior a mim e útil nesse caso, e acabei por reunir edições relativamente caducas de outros livros. Trouxe o pacote para ele. Tinha marcado algumas páginas e passagens nesses volumes. Expliquei-lhe que nelas estava "o essencial".
Desconfiado, mas sem conter o entusiasmo, o rapaz - parente de segundo grau a quem franqueei, assim, o acesso à minha pequena biblioteca - passou a escarafunchar tudo aquilo feito um rato, começando, é claro, pelas indicações que eu fizera.
"MEMORIAS POSTHUMAS"
Nas Memorias Posthumas, abriu o capítulo LV, chamado O Velho Diálogo de Adão e Eva, fantasticamente constituído apenas por reticências, pontos finais, de exclamação e de interrogação, além dos nomes dos protagonistas (Braz Cubas e Virgília). Numa página do XXVI, o jovem leu as anotações do narrador em forma de poesia livre: "Arma virumque cano/A/Arma virumque cano/ arma virumque cano/arma virumque/arma virumque cano/virumque." Olhou-me, parecia, perplexo.
ENTRE QUINCAS E AYRES
Veio então o Quincas Borba, com o capítulo CLXXXVI, curtinho, de apenas duas linhas: "?Para mim, é claro?, saiu pensando o Dr. Falcão, ?aquêle homem foi amante da mulher dêste sujeito?." O estudante coçou o queixo.
Em seguida, pôs os olhos no registrado em 21 de Septembro pelo Memorial de Ayres: "Ao sahir hoje de casa, vi passar na rua, ao lado opposto, a irman do corretor Miranda, D. Cesaria, tão risonha que parecia fallar mal de mim, mas não fallava, ia só - ou fallava de mim comsigo; mas só comsigo não teria tanto prazer. Cumprimentámo-nos e seguimos."
"Tem certeza de que tudo isso é do Machado?", ele me perguntou, tentando parecer irônico. Sem responder, teimei em que ele aguardasse mais e prosseguisse com o XLII (Uma Hypothese) de Esaú e Jacob: "(...) Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hypothese, espécie de andorinha, que avoaça entre arvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa alli, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothese vaga e colorida, a saber, que se os gêmeos tivessem nascido d?elle talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito."
O DICIONÁRIO E OS CONTOS
E, ainda, com o prefácio do Dom Casmurro (numa edição de 1970): "Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que êles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo."
O jovem fechou o livro, sentou-se numa poltrona e ficou calado. Eu disse que havia também os contos, como, por exemplo, O Espelho, que trata de um modo hiperconcentrado e premonitório a questão da identidade pessoal, da aparência em oposição à "alma"; Missa do Galo, uma pequena jóia da dissimulação, da sedução velada e da angústia numa sala de estar; ou o Trio em Lá Menor, transpondo magicamente para a escrita diferentes andamentos musicais.
Já me dava por satisfeito, quando veio o sopapo. "Peraí", disse o rapaz - que eu já não sabia se estava decepcionado ou, ao contrário, pronto para se tornar mais um fã do autor -, "essa é uma seleção sua, muito parcial, mas o Machado não é isso! Faltam mais romances e novelas, dizem que meio fracos em alguns casos, a poesia, o teatro, as crônicas, a crítica... Cadê a eloqüência, a elegância, o veio analítico, o velho ranzinza de que tanto se fala?"
EM BUSCA DA IMAGINAÇÃO
Sentei-me, também, e respondi, à guisa de conclusão: "Para saber o que é realmente o Machado, no que tem de bom e no que tem de ruim, talvez você devesse ir atrás do Bosi, do Merquior, do Schwarz, do Gledson e outros estudiosos que se debruçaram sobre ele. Isso aí que eu lhe mostrei é apenas um resuminho prático de um Machado que se fixou em mim como mestre do inusitado e da sugestão. Aquele que me marcou quando eu tinha a sua idade, impactante e antecipador na ousadia formal e no conteúdo irônico, sutil, galhofeiro. Irreverentemente experimental. Um universo machadiano bem circunscrito, até mesmo limitado, eu admito. Mas foi aquele que me estimulou a pensar, a imaginar mais, a construir personagens e cenas dentro da cabeça, renovando-os a cada releitura (ainda hoje não tenho nenhuma convicção quanto ao adultério, ou não, da Capitu, e acho isso delicioso). Que me fez gostar de escrever de forma condensada, porém com ritmo e liberdade, procurando alimentar, em mim mesmo e nos outros, a cultura da dúvida, em busca da imaginação. Que ainda hoje me interessa e me instiga. Esse Machado às vezes impalpável nunca poderá ser superado pelo cinema ou pela televisão - daí o seu valor imprescindível para a literatura. Por ele de vez em quando passo os olhos, o nariz e as mãos, com muito gosto. Aproveite se quiser."
O jovem...