Ex-embaixador do Brasil junto à União Européia, Dauster conhece a fundo as limitações impostas pela Europa e pelos EUA ao potencial agrícola dos países pobres, ao subsidiarem sua agricultura e taxarem a importação de alimentos. Ele cita um dado relevante: a área dedicada à produção de biocombustíveis no mundo inteiro soma 10 milhões de hectares, menos de 1% do 1,2 bilhão de hectares de terras agrícolas. E aponta quatro razões para explicar a inflação de alimentos no mundo e nenhuma delas se relaciona com biocombustíveis:
O esquema protecionista de elevados subsídios e tarifas de importação nos países ricos tem atuado para reduzir a rentabilidade e a produção de alimentos nos países pobres, desde o século passado;
Com o crescimento da economia e da renda, a demanda por comida expandiu nos países periféricos, mas a produção agrícola não acompanhou. Exemplo: há dois anos o consumo de óleos comestíveis na China era de 10 litros/pessoa/ano, hoje está em 19 litros. O arroz foi o produto que mais subiu de preço, porque a demanda na Ásia explodiu. "E ninguém faz biocombustíveis com arroz", ironiza Dauster;
Desastres climáticos recentes, entre eles uma grave seca na Austrália, reduziram a produção agrícola do mundo;
A explosão do preço do petróleo encareceu fertilizantes e o transporte de alimentos. "E não vejo a Europa nem o FMI ou o Banco Mundial falarem disso."
Dauster reconhece um problema: nos EUA a demanda por milho para fabricar etanol se dá subtraindo o uso para fins alimentares e isso elevou os preços do milho, da soja e do trigo. Mas esse é um fenômeno restrito aos EUA, nada tem que ver com o etanol brasileiro, já veterano no mercado e cultivado em terras próprias há 40 anos. E cita um dado para provar que substituir gasolina por etanol de milho é trocar seis por meia dúzia: a relação entre o uso de derivados de petróleo na produção de etanol de milho é de 1 x 1,3, enquanto no etanol de cana é de 1 x 9. E argumenta que: na hipótese absurda de suspender por dez anos a produção mundial de biocombustíveis, o efeito sobre o preço dos alimentos seria nulo, zero. "Mas, sem concorrente, o petróleo subiria ainda mais de preço, com efeito devastador sobre o custo dos alimentos."
Nos últimos dias os países periféricos suspenderam as exportações agrícolas para garantir o abastecimento interno. O Brasil recuou, mas dos asiáticos não sai mais arroz, a Argentina não vende mais trigo e por aí vai. Os países ricos ficaram assustados. Além de ter de pagar mais caro, já pensam em racionar alimentos. Reagiram e gritaram. O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, publicou artigo no Financial Time defendendo a conclusão da esquecida Rodada Doha, da OMC, que já dura sete anos.
"Levar Doha a um bom termo representaria uma ajuda de capital, já que reduziria as barreiras alfandegárias e as distorções de competição e favoreceria o comércio agrícola", escreveu. Este é um bom momento para os países ricos reconhecerem sua parcela de responsabilidade pela atual escassez de alimentos e agirem: se continuarem resistindo em Doha e não aceitarem retirar subsídios e tarifas, a situação só tende a piorar.
"Há décadas o potencial de produção de alimentos nos países da América Latina e da África é sufocado pela política protecionista da Europa e dos EUA. A negociação em Doha é o começo, o meio e o fim de tudo. Enquanto não houver racionalidade econômica para que os mais competentes (no caso, os países pobres que produzem barato) possam competir livremente, não haverá alimentos suficientes para abastecer o planeta." E completa: "Os ricos têm competência em transações financeiras e não enfrentam barreiras. Em alimentos, a competência é dos pobres, que têm abundância de terra, sol, água e gente."