O Sonho de Cassandra, outro acerto de Woody Allen,
começa com a compra de um barco – e termina em tragédia
Isabela Boscov
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No início de O Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream, Inglaterra/ Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país, os irmãos Ian e Terry examinam entusiasmados um veleiro e decidem juntar forças para comprá-lo. O diretor Woody Allen deixa claro que esse será o ponto de partida para uma tragédia: primeiro porque, apesar de pequeno e usado, o barco custa muito mais do que os irmãos têm, e essa imprudência, mais as outras que se seguirão a ela, há de trazer conseqüências; e segundo porque o veleiro será batizado justamente de O Sonho de Cassandra, e dica mais clara do que essa não há. A personagem da mitologia grega Cassandra ao mesmo tempo tinha um dom e era vítima de uma maldição – enxergava o futuro, mas ninguém jamais acreditava em seus vaticínios. Allen adora esse simbolismo, e já espalhou referências a ele em pontos diversos de sua obra. Aqui, contudo, ele o desdobra com método. Os irmãos cresceram numa casa em que a mãe humilha sem descanso o pai por causa de seus poucos talentos e proventos, e refletem pólos opostos dessa situação. Terry (Colin Farrell) é mecânico, gosta de beber e de apostar e não tem muita ambição. Ian (Ewan McGregor) toca o restaurante do pai e ocupa as horas livres fazendo-se passar por mais do que é – mais rico, mais poderoso e mais mundano, compondo o figurino com os Jaguares que pega na oficina do irmão. Ambos, portanto, abraçam o fortuito e o imponderável, Terry com suas apostas e Ian com suas imposturas. Deveriam então saber, mas agem como se não soubessem, que esse tipo de risco tem seu preço. Adicione-se a essa mistura um tio milionário (Tom Wilkinson) que precisa de um favorzinho – eliminar alguém que conhece suas desonestidades –, e o cenário está montado.
Terceiro filme de Allen na Inglaterra, O Sonho de Cassandra não chega a atingir a voltagem do fabuloso Match Point, de 2005 (que, como este novo trabalho, se inspirava muito no Crime e Castigo de Dostoievski). Mas tem sua própria sedução. Ela começa por uma atmosfera com que o diretor pouco se importou em sua carreira, mas que aqui ele crava desde a primeira cena: a variedade prosaica e cotidiana de desespero que acompanha Ian, Terry e sua família. Numa existência relativamente precária como a deles, os erros não vão ecoar de forma operística no futuro – eles vêm quase que imediatamente bater à porta e cobrar a conta. O grande apelo do filme, contudo, reside na sua dupla central. Maravilhosamente afinados, Farrell e McGregor expressam um amor fraterno genuíno, que se sobrepõe a toda diferença. Ou quase toda. E, se o destino deles não vai ser feliz, há pelo menos uma coisa com que se alegrar em Cassandra: a interpretação soberba de Colin Farrell como o homem que – outra novidade na obra de Allen –, embora fraco, tem uma consciência, e desabará sob o peso dela. Depois de tantos erros e decepções (O Novato, Alexandre, Miami Vice etc.), Farrell reencontrou aqui a centelha e o talento com que tanto prometera, mas até agora não cumprira.