Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, abril 24, 2008

Míriam Leitão - Hora da mesa


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
24/4/2008

O povo quer só comida. Aqui e no mundo inteiro. Nos últimos dias, líderes de FMI, Banco Mundial, FAO, ONU, OCDE, G-8 falaram com espanto e desinformação sobre a crise dos alimentos. O mundo bate cabeça e não entende que não está diante de um problema que vai sumir na próxima colheita. Ele estará conosco pelas próximas décadas. No Brasil, o problema está bem suavizado.

Os economistas inventaram, em inglês, uma daquelas palavras feiosas que eles adoram e que será mal traduzida para outros idiomas, ficando ainda mais dissonante. A palavra da vez é: agflação, a inflação agrícola. Andará de braços dados com a velha estagflação, outro temor que ameaça o mundo: o de que, além de não crescer, ainda enfrente alta de preços.

A única causa boa da crise de alimentos - o aumento dos humanos na mesa do almoço - está destinada a desaparecer pelo próprio efeito da crise. Houve crescimento econômico forte em quase todos os países nos últimos anos, e a renda familiar subiu. O resultado: mais pessoas puderam comer melhor. Essa boa notícia deve desaparecer por uma perversa lei econômica. A comida fica relativamente mais escassa, encarece e volta a ser inacessível. Esse mercado consumidor que acabou de chegar à mesa será expulso novamente se os preços continuarem disparando.

No Brasil, o índice que calcula a inflação dos de menor renda está subindo mais que o da inflação da classe média. Quanto mais os preços subirem, mais eles vão comprometer o orçamento dos mais pobres e mais sacrifícios vão pedir a eles. Na Nigéria, a comida compromete 73% do orçamento familiar; no Vietnã, 65% e, nos Estados Unidos, 16%. Os mais pobres sofrem mais; sempre.

Os líderes mundiais batem cabeça e propõem soluções como um new deal para alimentos, ou um reforço da ajuda aos países pobres. Há vários paliativos, mas eles fariam melhor se tivessem uma visão global para uma crise globalizada. Os eventos climáticos extremos, que dizimaram plantações em vários países do mundo, são só um prenúncio do que a mudança climática pode fazer com o planeta: as colheitas ficarão mais incertas, as terras aráveis mais raras. A insegurança alimentar é parte da mudança climática e é para ela que o mundo precisa pensar em soluções mais amplas.

A acusação ao biocombustível como o vilão é o ataque a uma das causas. O etanol de milho, de fato, provocou uma reação em cascata. Subsidiado, o milho para produzir álcool ficou mais caro e contaminou os preços do milho tradicionalmente produzido, que tinha custos menores. E foi além: contaminou o preço da soja e do trigo, que competem com o milho. Subiu o preço da ração animal e, assim, elevou o preço da carne.

A inflação de alimentos provocou confusão de rua no Haiti, na Indonésia, na Costa do Marfim, no Egito, em Camarões e muita preocupação na China. No Brasil, o que aconteceu até agora é pouco, e precisa de uma separação do que é nosso e do que vem de fora. O preço do pão é inflação de fora; a alta dos legumes é coisa nossa. A alta da soja é internacional; a do feijão, nacional. Quem faz essa separação é o professor Luiz Roberto Cunha. Ele explica que a chuvarada dos últimos meses foi ótima para apagar o risco de apagão, mas fez um estrago nos canteiros dos produtos in natura. É problema conjuntural, que vai e volta. Sempre acontecem oscilações assim:

- No tomate, a alta foi forte; mas, em outros legumes, é a oscilação natural que depende do regime de chuvas e secas. O feijão subiu por causa da nossa safra. A soja sobe no mundo inteiro e vai bater em óleo de soja. Milho sobe, mas felizmente está menos presente na nossa alimentação que na dos mexicanos e na de outros latino-americanos. No arroz, o Brasil é auto-suficiente e só agora havia começado a exportar.

Ontem o governo informou que já suspendeu a exportação de arroz dos seus estoques.

O Brasil sempre produziu muito alimento e pode produzir ainda mais, mesmo nos cenários de aquecimento global. Mas teria que aproveitar o momento e ter uma mudança completa de cultura. Passei o último fim de semana viajando pela Belém-Brasília. É triste o que se vê e o que não se vê. A floresta não existe mais há muito tempo; a produção não ficou em seu lugar. Da margem da estrada, o que se vê principalmente é terra degradada e improdutiva.

Os produtores brasileiros, se querem ocupar mais espaço no mundo, têm que mudar de prática. Não estou falando de todos. Mas alguns fazem sujeira suficiente para estragar a imagem dos produtos brasileiros.

A grande questão, no entanto, é que o mundo está com uma lista de remédios tópicos para um problema que ficou crônico. É preciso que se pense em reorganizar a produção e distribuição de alimentos. O tempo dos subsídios e das barreiras agrícolas impostos pelos Estados Unidos e União Européia tem que acabar. Isso distorceu o mercado e desestimulou a produção em muito país pobre. Sem mercado, eles apequenaram sua produção.

Os estudos sobre os efeitos das mudanças climáticas sobre a capacidade do planeta de produzir alimentos têm que ser aprofundados. Os líderes mundiais precisam pensar em soluções tão grandes quando a tsunami que se aproxima das nossas costas. O new deal que a ONU propôs tem que ser com o planeta. A Terra não nos agüenta mais; e essa crise é o mais gritante sinal que o planeta está nos mandando.

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