Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 09, 2012

Engenharia literária - HUMBERTO WERNECK



O Estado de S.Paulo - 09/09


Ao reler O Desatino da rapaziada - que, vinte anos e algumas reimpressões depois, ia ganhar (como ganhou) reedição com cara nova -, minha mão coçou para mexer aqui e ali, atualizando ou introduzindo informações.

Deu vontade, por exemplo, de enriquecer a passagem em que aparece um moço que trabalhava num efêmero porém mitológico point noturno da Belo Horizonte dos anos 60, o Bucheco, reduto moderninho, entre outros, de Fernando Gabeira e Ivan Angelo. No livro está dito que mais tarde o tal moço realizou o primeiro sequestro de avião no Brasil. Mas não se fica sabendo que ele então era, ou tinha sido, casado com uma dentucinha enérgica a quem o futuro reservaria condição bem mais nobilitante que a de mulher do cara do bar ou da pirataria aérea.

O problema é que vinte anos atrás, quando saiu esse meu livro, sobre escritores e jornalistas em Minas Gerais, nem a dentucinha em questão podia imaginar que acabaria, sem aquele ou sem o subsequente marido, instalada nas culminâncias da República. Subiu mais que o avião sequestrado pelo antigo companheiro. Mas incluir essa informação de 2010 num livro de 1992 seria criar nele um anacronismo. Nota de pé de página, então? Nem pensar. O autor não gostaria de ver sua obrinha calçar notas (pois onde há uma, há várias), o que a transformaria numa chatíssima centopeia literária. De resto, pelo que depois veio a ser, a dentucinha merece bem mais que um plebeu rodapé.

De fora do reeditado Desatino ficou também uma observação gaiata que outro dia me ocorreu quando rumava para o longínquo aeroporto da capital mineira, cujo nome, Confins, já diz tudo.

Trafegando pela Linha Verde, reparei na sucessão de viadutos que naquela estrada homenageiam alguns dos maiores escritores de Minas - Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Aníbal Machado, entre eles.

Será - pensei - que a homenagem tem a ver com o fato de que vários desses, na juventude, desafiavam a pasmaceira belo-horizontina com o hábito de caminhar sobre os arcos do viaduto de Santa Teresa, no centro da cidade, correndo o risco de despencar sobre uma linha de trem?

Quem lançou a moda, já casado e beirando os 30 anos de idade, foi Drummond, de cara limpa. A estripulia, registrada no livro, acabou virando rito de passagem para jovens aspirantes às letras, em sua radical admiração pelo poeta. Na escalada rumo à glória, tinha um viaduto no meio do caminho, e convinha cruzá-lo pela corcova dos estreitos arcos de cimento. Para o bem ou para o mal da literatura, ninguém caiu daquelas alturas - e olha que o trânsito foi intenso, pois as gerações seguintes, ávidas por galgar ao Olimpo das Letras, macaquearam ritualmente o alpinismo urbano de seus mestres. Nem os que subiram tiveram por isso elevada a avaliação de seus escritos.

Prova do que acabo de dizer você encontra nestas maltraçadas, pois também eu grimpei nos arcos do viaduto. Com tanta paúra que não cheguei a saborear meu quinhão de vertigem de sobreloja - aquela apoteose mental que se apossa de quem, tendo subido um pouquinho, já se julga merecedor de uma vertigem da boa.

Olhando os viadutos da Linha Verde, não pude deixar de especular se a imponência deles corresponderia, simetricamente, à produção de cada um dos homenageados. Se foi esse o critério, que outras obras de engenharia poderiam perpetuar um dia os nomes de escribas da terra hoje atuantes? Quem, por sua literatura introspectiva, merecerá um túnel? Quem, pela leveza de seu estilo, nomeará uma passarela? Existirá algum que faça jus aos pavões arquitetônicos de uma ponte estaiada?

Dito isso, seria maldade de quem me lê indagar qual obra de engenharia eventualmente corresponderá à tosca produção deste cronista. Com a modéstia que o caracteriza, ele se antecipa e descarta: nenhuma. Mas para o caso de que alguma lhe venha a ser designada quando aqui não estiver para impedi-lo, o cronista pede desde já: posso até merecer, mas, por favor, sarjeta não.

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