Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, agosto 31, 2012

O mensalão e o cavalo de Tolstoi - FERNANDO GABEIRA


O Estado de S.Paulo - 31/08


Para os formalistas russos, grande parte de nosso cotidiano é vivida de forma inconsciente e automática. A arte é a melhor maneira de acordar dessa hipnose, mostrando-nos que uma pedra é uma pedra. Eles valorizavam táticas de distanciamento, como as de Tolstoi, por exemplo, que analisou as fragilidades humanas a partir da perspectiva de um cavalo. Uma das frases do equino: "A ação dos homens, pelo menos daqueles com quem tive contato, é determinada por palavras, e não por fatos".

Ao avaliar uma viagem de observação pelo processo eleitoral que se inicia, pressenti que tanto as eleições como o julgamento do mensalão são vistos com uma certa distância pelo homem comum. O mais interessante, ao refletir sobre as cidades que visitei em Estados distintos, é constatar também que o júri do mensalão e as eleições são fenômenos independentes.

Dominada pelas alianças e rivalidades municipais, as eleições têm uma dinâmica própria. O esforço para adiar o júri foi inútil. A impressão que tenho, até o momento, é de que o PT vencerá nas cidades onde venceria e perderá naquelas em que a tendência é de derrota. Apesar do mensalão. A única cidade em que o júri tem impacto direto é Osasco, onde o réu João Paulo Cunha (PT-SP) é candidato a prefeito. Ainda assim, suspeito que ele tendia a perder, mesmo sem julgamento.

Como se diz na Fórmula 1, o circo está se armando. Faixas e cartazes nas ruas, uma pequena multidão empregada sazonalmente, assessores pendurados nos celulares, carros de som, slogans: vote em Zé da Padaria, no Renato do Gás, no Isaac da Cesta Básica... E as pessoas olhando, desconfiadas.

O fato novo que esquenta o tom dos candidatos é a fragmentação da própria aliança nacional. Vi isso em Belo Horizonte, onde PT e PSB se separaram. Leio que é o mesmo no Recife, onde a aliança também se rompeu. Quando a separação é muito recente as emoções são mais intensas.

O caso mais curioso de fragmentação se dá em Juazeiro, na Bahia. O candidato do PT a prefeito, Joseph Bandeira, faz sua propaganda eleitoral normalmente, mas o partido apoia o candidato do PCdoB e lançou um vice na sua coligação. O PT tem um candidato a prefeito numa chapa e um candidato a vice em outra! Um dia a Justiça Eleitoral vai ajustar esse disparate. Até lá a campanha será animada pelo pitoresco.

Nas ruas fala-se pouco da disputa. A coisa ainda não pegou, apesar do início da propaganda na TV. Fala-se do mensalão, mas a esperança deserdou a política e se deslocou para a Justiça.

Em Vitória da Conquista, onde nasceu Glauber Rocha, pergunto-me se o júri do mensalão não pode ser visto como uma réplica da batalha do cangaceiro Corisco e Antônio das Mortes. Joaquim Barbosa, com sua capa preta, torturado por dores nas costas, denunciando implacavelmente o desvio de dinheiro público e Ricardo Lewandowski se esgueirando pela caatinga, fugindo, como Corisco, da origem do dinheiro, de sua trajetória obscura, fixando-se apenas na sua destinação, a campanha política. Os mensaleiros são uma versão perversa de Robin Hood, tiram dinheiro do povo para convencê-lo a votar neles.

"Quando fui à internet ver como esse Lewandowski era recebido", contou-me um professor baiano, "a máquina despejou uma tonelada de mensagens dizendo que ele ia jogar no Juventus da Itália. O futebol italiano e o craque polonês eram mais presentes que o mensalão e o ministro brasileiro".

Ainda na Bahia, um candidato de oposição me disse que não iria tocar no mensalão. Pra quê? Ali eles dividem o governo entre os partidos aliados e todos tiram proveito dos cargos que ocupam. Além do mais, os prefeitos dão emprego. Cada lugar tem o seu mensalão. Lembrei-me das cidades fluminenses onde os royalties do petróleo, segundo uma pesquisa do Ipea, serviram para contratar 30% dos funcionários. E também do desabafo do prefeito Márcio Lacerda sobre a voracidade do PT para ocupar os cargos em BH.

O mensalão é um estado de espírito nacional que dificilmente será rompido com as eleições. O que pode acontecer com o resultado do júri é uma lenta cicatrização das feridas e um discreto renascimento das esperanças políticas.

Esse quadro impreciso e fugidio não deveria impedir que os grandes e urgentes problemas urbanos fossem discutidos amplamente. Em todas as grandes e médias cidades por onde passei se falava de mobilidade urbana. E a mobilidade não se limita ao transporte coletivo. Ela pode acionar uma série de debates sobre o uso do carro individual, ciclovias, rodízios, pedágios, até a própria administração do tempo urbano, numa tentativa de reduzir o impacto do rush, em que todos circulam ao mesmo tempo.

Fala-se muito em saúde. Ela pode acionar também uma nova cadeia de discussões, que não se limite ao estado dos hospitais públicos. Saneamento, água contaminada, controle sanitário dos alimentos, áreas de lazer, políticas para a velhice, enfim, um quadro bem mais amplo.

As cidades crescem de forma desordenada e a política é um pássaro do entardecer, sempre atrasada. Há pessoas que pensam que vivem apenas em casa. Mas vivemos na cidade. Mesmo torturados por dores nas costas, teremos um dia de humanizar o caos urbano. Temo que esse dia ainda não seja em outubro.

Um passo da Justiça, no entanto, pode remeter-nos de novo aos tempos em que pedíamos eleições diretas porque acreditávamos não só no direito, mas na importância de votar. Um dos grandes feitos do PT e seus aliados foi trair o desejo de uma mudança que transcenda as necessárias melhorias materiais. Mas o desejo tem sete vidas.

"Jurando em dez estrelas/ sem santo padroeiro/ Antônio das Mortes/ matador de cangaceiro/ (...) Se entrega, Corisco/ eu não me entrego, não/ (...) eu me entrego só na morte/ de parabelo na mão". Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o filme de Glauber, a esperança sobrevive até na última frase de Corisco: "Mais fortes são os poderes do povo".

Uma curta mensagem aos salvadores de ontem, de hoje e de amanhã.

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