O Globo - 28/08
A luta pela democracia marcou o século XX brasileiro. Somente em oito dos cem anos é que não ocorreu nenhum tipo de eleição, de voto popular, para escolher seus representantes. Foi durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). No regime militar as eleições tiveram relativa regularidade, mas sem a possibilidade de o eleitor escolher o presidente da República e, a partir de 1965, dos governadores e dos prefeitos das capitais e das cidades consideradas de segurança nacional. Nas duas décadas do regime militar (1964-1985), a luta em defesa da eleição direta para o Executivo e da liberdade partidária foram importantes instrumentos de mobilização popular.
Com o estabelecimento pleno das liberdades democráticas, após a promulgação da Constituição de 1988, as eleições passaram a ter uma regularidade de dois anos, entre as eleições municipais e as gerais. Deveria ser uma excelente possibilidade para aprofundar o interesse dos cidadãos pela política, melhorar a qualidade do debate e e abrir caminho para uma gestão mais eficaz nas três esferas do Executivo e, no caso do Legislativo, para uma contínua seleção dos representantes populares.
Para um país que sempre teve um Estado forte e uma sociedade civil muito frágil, a periodicidade das eleições poderia ter aberto o caminho para a formação de uma consciência cidadã, que romperia com este verdadeiro carma nacional marcado pelo autoritarismo, algumas vezes visto até como elemento renovador, reformista, frente à ausência de efetiva participação popular.
Desde 1988, está será a décima terceira eleição consecutiva. Portanto, a cada dois anos temos, entre a escolha dos candidatos e a eleição, cerca de seis meses de campanha. Neste período o noticiário é ocupado pelas articulações políticas, designações de candidatos, alianças partidárias, debates e o horário gratuito de propaganda política. Cartazes são espalhados pelas cidades, carros de som divulgam os candidatos (com os indefectíveis jingles) e é construída uma aparência de participação e interesse populares.
Porém, é inegável que a sucessão das eleições tem levado ao desinteresse e apatia dos cidadãos. A escolha bienal de representantes populares tem se transformado em uma obrigação pesada, desagradável e incômoda. Tudo porque o eleitor está com enfado de um processo postiço, de falsa participação. A legislação partidária permite a criação de dezenas de partidos sem que tenham um efetivo enraizamento na sociedade; são agrupamentos para ganhar dinheiro, vendendo apoio a cada eleição. A ausência de um debate ideológico transformou os partidos e os candidatos em uma coisa só. O excesso de postulantes aos cargos não permite uma efetiva comparação. Há uma banalização do discurso. E o sistema de voto proporcional acaba permitindo o aparecimento dos "candidatos cacarecos", que empobrecem ainda mais as eleições.
A resposta do eleitor é a completa apatia, com certo grau de morbidez. Vota porque tem de votar. Escolhe o prefeito, como agora, pela simpatia pessoal ou por algo mais prosaico; para vereador, vota em qualquer um, afinal, pensa, todos são iguais e a Câmara Municipal não serve para nada. O mesmo raciocínio é extensivo à esfera estadual e nacional. No fundo, para boa parte dos eleitores, as eleições incomodam, mudam a rotina da televisão, poluem visualmente a cidade com os cartazes e ainda tem de ir votar em um domingo.
Para o político tradicional, este é o melhor dos mundos. Descobriu que a política pode ser uma profissão. E muito rendosa. Repete slogans mecanicamente, pouco sabe dos problemas da sua cidade, estado ou do Brasil, a não ser as frases feitas que são repetidas a cada dois anos. O marqueteiro posa de gênio, de especialista de como ganhar (e lucrar) sem fazer muita força. Hoje é o maior defensor das eleições bienais. Afinal, tem muitos funcionários, tem de pagar os fornecedores, etc, etc. Para ele, a democracia acabou virando um tremendo negócio. E é um devoto entusiástico dos gregos, pois se não fosse eles e sua invenção....
Não é acidental, com a desmoralização da política, que estejamos cercados por medíocres, corruptos e farsantes. O espaço da política virou território perigoso. Perigoso para aqueles que desejam utilizá-lo para discutir os problemas e soluções que infernizam a vida do cidadão.
O político de êxito virou um ator (meio canastrão, é verdade). Representa o papel orquestrado pelo marqueteiro (sempre pautado pelas pesquisas qualitativas). Não pensa, não reflete. Repete mecanicamente o que é ditado pelos seus assessores. Está preocupado com a aparência, com o corte de cabelo, com as roupas e o gestual. Nada nele é verdadeiro. Tudo é produto de uma construção. Ele não é mais ele. Ele é outro. É a persona construída para ganhar a eleição. No limite, nem ele sabe mais quem ele é. Passa a acreditar no que diz, mesmo sabendo que tudo aquilo não passa de um discurso vazio, falso. Fica tão encantado com o personagem que esquece quem ele é (ou era, melhor dizendo).
Difícil crer que toda a heroica luta pelo estabelecimento da democracia, do regime das plenas liberdades, fosse redundar neste beco sem saída. Um bom desafio para os pesquisadores seria o de buscar as explicações que levaram a este cenário desolador, em que os derrotados da velha ordem ditatorial se transformaram em vencedores na nova ordem democrática. Enfim, a política perdeu sentido. Virou até reduto de dançarinos.
Tem para todos os gostos, até para os que adornam a cabeça com guardanapo.