FOLHA DE SP - 22/08
Ali estava a chave: a fome e a úlcera. A fome ficara para trás, mas Nelson nunca se esqueceria dela e de como ela o levara à tuberculose.
Fome provocada por perseguição política -os vitoriosos de 1930 impedindo que ele e seus irmãos tivessem emprego em jornais. Daí que sua fome de liberdade fosse ainda maior: "A liberdade é mais importante que o pão", dizia.
Anos depois, Nelson poderia passar a galinha ao molho pardo, que adorava. Mas a úlcera o tolhia. Em casa, ela o reduzia a purê com carne moída. Na rua, não era diferente -sei disso porque fui a almoços que seus amigos lhe ofereciam no "Bigode do Meu Tio", restaurante de seu filho Joffre, em Vila Isabel, nos anos 70. Uma singela carne-seca com abóbora parecia levá-lo ao céu.
Em função da palestra, procurei referências a comida em suas peças. Em vão. Mas, numa de suas crônicas, descobri uma cena rodriguiana: a do mendigo imundo e morto de fome que é recolhido por uma família, sentado a uma mesa na cozinha e servido de um prato capaz de alimentar uma tropa. O homem se atira a ele. Pouco depois, faz uma pausa, olha em torno e pergunta: "Tem uma pimentinha?". Ou seja, matar a fome não é tudo -há que haver lugar também para a fantasia.
E acho que sei por que Nelson se encantou com uma frase que lhe foi dita pelo dr. Aloysio Salles, advogado e boêmio carioca: "O homem só gosta do que comeu em criança". Devia lembrar a Nelson a única época em que ele próprio comeu com felicidade, sem fome e sem úlcera.