Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 07, 2012

Verdade apaziguadora - MIGUEL REALE JÚNIOR


 O Estado de S.Paulo - 07/07


Conforme a Lei Federal n.º 12.528, a Comissão da Verdade tem por objeto esclarecer os fatos violadores de direitos humanos praticados durante o regime de exceção, revelando a autoria e as circunstâncias dos casos de tortura, morte, desaparecimento forçado. Logo em seguida à criação da comissão surgiu o debate acerca do âmbito de seus trabalhos, discutindo-se se caberia levantar também as condutas de ação armada praticadas pelos opositores do regime ditatorial.

Não me parece ser essa a missão atribuída pela lei, pois restrita a sua finalidade ao esclarecimento dos atos praticados com abuso de poder, mesmo porque as ações violentas realizadas pelos integrantes dos movimentos armados, como ALN, MR-8, POC, VAR-Palmares, estão registradas nos autos dos inquéritos e processos penais instaurados. O que se pretende resgatar é a verdade do ocorrido nos porões, tarefa apenas em parte realizada pela Comissão de Mortos e Desaparecidos - que presidi de 1995 a 2001 -, ao elucidar algumas das circunstâncias das violências oficiais, muitas vezes com indicação dos responsáveis pela tortura ou daqueles que encenaram conflitos para justificar o assassinato de suspeitos. Esses dados constam do livro Direito à Memória e à Verdade - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de 2007.

A reconstrução histórica e a revelação da autoria das barbáries praticadas entre quatro paredes sob a proteção do Estado é que devem vir a lume. Há uma grande diferença entre a violência armada dos adeptos dos movimentos contestadores do regime e a violência dos agentes estatais.

Os militantes da esquerda armada arriscavam a vida, dominados por um ideal que os fazia desprezar a evidente desproporção de forças entre as suas organizações e o aparato militar. Agiam com vista à obtenção de uma ordem social, a seu ver, mais justa, mas corriam sempre imenso risco de perecer nesse confronto. Os agentes do Estado atuavam em defesa de um regime de exceção restritivo da liberdade política e certos da impunidade pela violência praticada, sem receio de serem responsabilizados pelas mortes e pelos sofrimentos causados pela tortura. De um lado, a coragem de se expor contra a estrutura policial-militar; de outro, a segurança do acobertamento pelo próprio órgão governamental que deveria zelar pela integridade física do prisioneiro.

Cumpre ser desfeito o apagamento dessas ações ilícitas, mesmo que a responsabilidade penal não se instaure, por força da anistia de 1979. Não existe, graças à anistia, o direito ao esquecimento: se não cabe exercer o direito de punir, há, todavia, o de buscar e revelar a verdade.

A verdade que mais dói não vir à tona é a das circunstâncias da morte dos desaparecidos e do paradeiro de seus corpos. Perdura o desassossego, fica um vazio enquanto se desconhece como se deu a morte e onde está o corpo da pessoa amada. Saber onde está o corpo atende a um natural sentimento de respeito à pessoa querida para se completar o reconhecimento do fim do seu ciclo de vida e poder prestar-lhe as homenagens, tal como Antígona fez ao irmão Creonte.

Em 2001 levei em mãos do ministro da Defesa ofício em que assinalava o conhecimento pelas autoridades militares e policiais do destino dos corpos dos desaparecidos. Transcrevo a seguir parte desse ofício.

"Venho solicitar a cooperação de Vossa Excelência para que sejam disponibilizados a esta Comissão Especial, os registros que constam nos arquivos políticos existentes, a fim de que seja possível extrair informações que nos possam levar a indícios dos locais de sepultamento dos desaparecidos políticos durante o regime militar". A Lei 9.140/95, em lista anexa ao texto, reconheceu o desaparecimento de 136 cidadãos, sendo que a Comissão Especial incluiu outros. Desse total, apenas 3 corpos foram resgatados pelos seus familiares, através de informações por eles mesmos coletadas: Luiz Eurico Tejera Lisbôa, Denis Casemiro e Maria Lúcia Petit da Silva.

"Citamos, exemplarmente, o caso de Ruy Carlos Vieira Berbert, do qual os familiares não tinham sequer a data ou o provável local de desaparecimento no país, e que foi localizado, morto em Natividade (GO), a partir de exame em documento encontrado no arquivo do DOPS/SP, em listagem elaborada para ser entregue ao Dr. Romeu Tuma (anexo 1). Apesar de não ter sido possível encontrar, no cemitério local, os restos mortais, os familiares puderam saber onde e como fora morto, e por qual nome havia sido enterrado. Levando-se em conta que o governo e os ministros militares têm, sistematicamente, negado a existência de arquivos sobre o tema, anexamos ao presente documentos oficiais, que podem orientar a busca.

Relatórios dos Ministérios do Exército, Marinha e Aeronáutica (anexo 2) foram elaborados em 1993, a pedido do então Exmo. Ministro da Justiça Maurício Corrêa, e contém informações produzidas até 1992. Partindo da premissa de que não há uma lista indicando os locais de morte e sepultura, mas de que os relatórios assumem a prisão de alguns dos desaparecidos e contêm datas de morte posteriores às denunciadas pelos familiares, é fundamental que se possa examinar os documentos que originaram tais informações, a fim de buscar-se, nas entrelinhas, maiores informações, tal como foi feito no caso de Ruy Carlos, acima citado".

A resposta a esse ofício foi igualmente no sentido da inexistência de informes reveladores de indícios necessários ao encontro dos corpos. Agora, passados mais de dez anos desse ofício, e após tantas expedições ao Araguaia ao longo de 16 anos, com resultados parcos, espera-se que perante a Comissão da Verdade não se esconda a verdade, pois o apaziguamento dos espíritos exige que se saiba como foram mortos os desaparecidos e onde se encontram os seus despojos, para que recebam a homenagem dos familiares e amigos.

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