O Estado de S. Paulo - 27/07/2012 |
Estamos em pleno processo de julgamento do chamado mensalão. Para muitos que estão chegando agora, parece que o Brasil é uma nação vocacionada para os negócios escusos e à primeira oportunidade todos os políticos se voltam para saqueá-la. Outros tantos, que desconhecem o passado recente, repetem com convicção que nunca antes houve tamanha bandalheira como agora. Nem tanto ao céu nem tanto à terra. Fui deputado federal duas vezes e estadual, uma. A esses 12 anos de experiência pública somo mais dez como comentarista de política no rádio e na televisão (é tão mais fácil falar mal dos outros...). Durante esse período convivi com todo tipo de gente. Há quem fala e não faz, há quem faz e não fala. Há gente que não é capaz de nada mesclando-se com gente que é capaz de tudo. Há políticos que conquistaram seu mandato graças ao voto concentrado numa única região e há os que se elegem por identidade ideológica com segmentos geograficamente esparsos da opinião pública. No somatório, todos eles se assemelham: cada um cuida de si e procura sobressair-se perante seu eleitorado. Aliomar Baleeiro, que no início da década de 1970 era considerado o homem mais culto e inteligente do Parlamento brasileiro, foi quem cunhou a melhor explicação para o Congresso Nacional: tem por lá uns 10% de gente a fim de trabalhar e que sabe o que está acontecendo e, no outro extremo, há uns 30% que não acompanham sequer as votações em plenário. Entre as duas pontas, ainda sobram 60%. E essa é a massa crítica do Parlamento. Já era assim nos tempos de Baleeiro, continua assim nos tempos atuais. Não, não se devem esperar gestos de heroísmo provenientes dos parlamentares. Eles só conseguem falar duro escudados pela tribuna e protegidos pela imunidade parlamentar. Fora desse especialíssimo contexto vale a definição atribuída a Kennedy: se Deus lhe deu um par de pernas covardes, por que não usá-las para fugir? Isso não chega a ser um defeito. É exatamente por causa dessa característica que o Parlamento é a casa do consenso e da conciliação. Inúmeras crises já foram evitadas assim. Muita gente não compreende que o trabalho parlamentar é um processo. Por se tratar de uma elaboração coletiva, nenhum parlamentar se pode vangloriar de ter proposto sozinho alguma ideia. Toda e qualquer proposta é encaminhada, primeiro, à Comissão de Constituição e Justiça, na qual, segundo as palavras de um colega de minha época, "as propostas são atraídas para um beco escuro onde são cruelmente asfixiadas e esquartejadas". Somente sobrevivem a esse processo as que, de alguma forma, interessam à Presidência da República. Mesmo assim, não sobrevivem incólumes. Recebem inúmeros apêndices que as tornam irreconhecíveis até para seus autores. Depois disso ainda são submetidas às comissões temáticas e só então levadas ao plenário. Muitas pessoas se perguntam: como é a vida de um deputado em Brasília? Pode-se afirmar com certeza que, salvo algumas raras exceções, os parlamentares gozam de prestígio apenas em sua base eleitoral. Em Brasília convivem com 512 colegas que se acreditam tão importantes quanto eles. Os deputados são alojados no Anexo IV da Câmara, um imenso edifício de dez andares com cerca de 50 gabinetes por andar. Passei oito anos em Brasília e, mesmo tendo puxado conversa com o responsável pelo meu andar, ele jamais me cumprimentou pelo nome. O que prova, na prática, que em casa que tem muitos donos quem manda, de fato, é o mordomo. Como são tratados os parlamentares em Brasília? Um exemplo emblemático ocorreu comigo numa loja de shopping center local. Na hora de pagar a conta, assinei um cheque e a moça do caixa, gentilmente, me pediu documentos. Eu, orgulhoso, saquei a carteira de deputado. Ela me respondeu, impassível: "Tudo bem, mas eu preciso de um documento para valer. O senhor não tem carteira de identidade?" Outro exemplo, este mais extremo, ocorreu no aeroporto da cidade. Em 1991 existiam quatro empresas aéreas que supriam o tráfego nacional. Eram a Varig, com sua afilhada Rio Sul, a Vasp e a Transbrasil. Acontece que no percurso muitos aviões quebravam, o que deixava a linha aérea desfalcada. Resultado: muitos voos, a partir de Brasília, se atrasavam ou eram simplesmente cancelados. Para evitar tumultos no balcão de embarque quase todas as operadoras seguiam o mesmo procedimento: o gerente ia embora para casa, os diretores não eram encontrados e ficavam no balcão atendentes/aeromoças muito simpáticas, porém sem nenhum poder decisório. Logo no início do meu primeiro mandato assisti a uma cena muito significativa. José Dirceu, que também estava debutando em Brasília, inconformado por não poder embarcar, resolveu promover um escândalo. Subiu no balcão da empresa aérea e, após um breve e exaltado discurso, avisou que se não pudesse embarcar ninguém mais embarcaria. Como estava pousando outro avião da mesma companhia, que vinha lotado de outras plagas, ele não teve dúvidas: invadiu a pista e se sentou na roda dianteira da aeronave. A Infraero decidiu o impasse: simplesmente ordenou à vigilância que removesse o intruso da pista, Ele saiu carregado, sem violência alguma. Outro passageiro ilustre teve reação oposta: ao tomar conhecimento do cancelamento do voo, simplesmente remarcou a passagem para o dia seguinte e se foi. Fernando Henrique Cardoso já era senador da República havia mais de uma década. Ele sabia que nessas horas não há nada a fazer. Se houver alguma inverdade nessa história, desafio o destemido Dirceu a refutá-la. Ele agiu dessa forma. Ele sempre agiu dessa forma. Assim é Brasília, Eis aqui uma descrição que as pessoas não costumam fazer |
Entrevista:O Estado inteligente
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