FOLHA DE SP
Quem está apaixonado se transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais
Uma paixão é a melhor coisa do mundo -para quem a está vivendo. Mas para as testemunhas desse sentimento inigualável, tema de inspiração dos poetas, o assunto é discutível.
Por mais que se torça para que as pessoas de quem gostamos se apaixonem e sejam muito felizes, quando isso acontece, a tendência é guardar uma certa distância; com o tempo, essa distância vai ficando cada vez maior, pois quem está apaixonado se transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais.
Aquela amiga divertida que tinha opiniões engraçadas sobre as coisas e contava histórias escabrosas do passado -dos outros e dela própria- cessa de existir.
Como vai poder falar sobre o fim de semana que passou em Salvador quando, depois de umas oito caipirinhas, foi dar um mergulho, perdeu o sutiã no mar e teve que voltar para a praia mal conseguindo esconder os seios? Todo mundo viu, claro, e até ela achou muito divertido, mas sinceramente: uma mulher pode contar isso diante de um homem profundamente apaixonado? Claro que não.
Como também não pode falar sobre coisas mais calmas, digamos assim: que adorava seu ex-marido, que sofreu muito quando se separou, que andou tendo uns namoros que não deram certo e resolveu nunca mais gostar de ninguém, até que o encontrou etc. e tal. É lindo, mas um homem apaixonado pode ouvir isso numa boa? Difícil.
É da troca de experiências passadas que nascem as amizades, e como nada disso vai poder mais ser falado, os amigos começam a se afastar -os dela e os dele.
Passar horas com duas pessoas se olhando olho no olho, mão na mão, sem poder mencionar noites divertidas e loucas vividas em outros tempos, quando saíam da pista de dança às 5h da manhã e ainda iam a um botequim comer um sanduíche de mortadela e beber cerveja, fica difícil.
Amigos de apaixonados têm que tomar o maior cuidado com o que dizem, para não cometer aquelas indiscrições horrendas -e ninguém quer ficar mudo, quer? Eu, não.
As coisas acontecem naturalmente: os amigos se afastam, eles se afastam dos amigos e se tornam pessoas sem passado -e uma pessoa sem passado não é ninguém; aliás, não é nada. Ninguém pode abrir mão do seu, e olha que cada um de nós tem pelo menos uma coisa -ou várias- que preferia que não tivesse acontecido ou que pelo menos ninguém jamais soubesse.
Tem mais: uma mulher apaixonada costuma não ter opinião sobre nada: dependendo do parceiro, deixa de fumar, passa a não comer carne vermelha, a só gostar de música clássica -ou pagode ou rock-, a acordar às 3h da manhã para ver a seleção jogar, mesmo odiando futebol -e ainda fazer um café no intervalo do jogo-, e só vota no candidato que seja o mesmo do seu amado. Estar apaixonado e conservar alguma personalidade é praticamente impossível.
Ah, a paixão. É muito boa enquanto dura, mas impede que se viva qualquer outra coisa, a não ser ela mesma.
Um dia -que me perdoem os que estão apaixonados- cansa. Cansa, não: exaure.
Mas acho que estou falando de coisas de um passado muito, mas muito remoto. Há quanto tempo você não ouve alguém declarar, com todas as letras, que está perdidamente apaixonado?
Eu, há séculos.
PS - Duas semaninhas de férias, estou de volta no dia 12 de agosto, até.
Entrevista:O Estado inteligente
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