O Globo - 27/06/2012 |
Dizem que o mundo está aquecido. Eu afirmo que é pior: vivemos num mundo requentado. Servir uma comida requentada é sinal de preguiça; melhor seria fazer um prato novo. É como ensinar a quem acha que sabe - essa multidão que povoa o mundo. O que singulariza um universo globalizado é um excesso de meios e uma enorme carência de fins. Nele, o velho tende a retornar como novo. No mundo diário isso surge com os homens de cabelo pintado da cor de burro quando foge. A vida é uma linha. Ela começa no nascimento, passa por um longo período de consolidação física e ética; segue para uma aliança conjugal cuja consequência é geralmente a criação de novas vidas e a responsabilidade de transformá-las em pessoas e, finalmente, ela nos leva a um ponto sem futuro (toda mudança na velhice é problemática porque não se mexe em time que está ganhando) que antecede a saída deste dramalhão barato e belo do qual tomamos parte sem termos sidos convidados. Não obstante essa implacável linearidade, cada fase da vida tem seus impulsos, seus dilemas e suas regressões. Uma nova etapa não acaba automaticamente com a outra. Exceto nos rituais e por isso eles são tão importantes, essas fases todas se confundem e criam dilemas dentro de dilemas e regressões (bem como saltos e rompimentos) em meio aos retornos. Continuar crescendo (dizendo não a nós mesmos) ou voltar a irresponsabilidade da infância? Caminhar sozinho na tempestade ou desistir? Como saber se o Brasil vai dar certo se ele continua e nós um dia partimos? Na meio do jardim podado da velhice encontramos o menino inseguro ou o adolescente moleque; na juventude tentamos viver o idoso que fala pausadamente e imagina que sabe tudo. As fases da vida seguem como um trem de ferro, mas a composição não é fixa. Muitas vezes a locomotiva é empurrada por vagões vazios... Tenho a sensação do requentado. A Rio+20 me reitera - apesar do esforço de alguns grupos e do Sergio Besserman - a Torre de Babel. E existe coisa mais velha do que redescobrir em meio a fanfarra da mídia e da presunção dos "chefes de estado" que nós, humanos, não nos entendemos nem quando se trata de salvar o teatro no qual atuamos? O único modo de encontrar o acordo é saber que estamos sempre em desacordo. Geralmente em nome de algo maior que para o outro é obviamente menor. Movidos por um enredo individualista, mas ignorando-o, queremos discutir o planeta sem nos darmos conta da força dos nossos tabus nacionais e patrióticos. O resultado é uma conta que não fecha, pois nossa maior dificuldade é justamente perceber o planeta como um englobante - como uma totalidade que tem suas razões e demandas. Há algo mais cinicamente requentada do que essa CPI Cachoeira-Demóstenes-Delta num momento eleitoral? Pode haver algo mais lamentável numa democracia do que a mentira e a mendacidade como valores políticos? O caso Demóstenes é culminante - como ter democracia sem oposição? Melhor do que isso, só o encontro de Lula com Maluf - essas criaturas da modernidade paulista -, ambos candidatos a padrinhos do candidato Haddad. Mas, no meio do retorno do nosso velho personalismo negativo e onipotente, surge uma Erundina que usa sua individualidade para dizer que sem os valores nenhum de nós é coisa alguma. E não há nada mais patético do que um ator sem texto. Eis uma pergunta que não pode calar: é possível fazer política - essa esfera da vida que hoje substitui a religião - permitindo tudo? O cálculo do poder pelo poder, o vencer a qualquer custo, a norma brasileira segundo a qual em política o pecado é perder, a ideia de que os adversários são canalhas são concepções vencedoras? Será que perdemos o senso e não nos importamos com a politicalha de alguns políticos? Pode-se viver democraticamente numa sociedade que tem uma multidão de leis, mas que não pune os privilegiados - os que, como Lula e Maluf e Haddad - entram no grupo do "nós somos tu e tu é nosso"? É possível conviver com o roubo aberto de bens essenciais para a nossa própria existência como escolas, hospitais, polícia e saneamento? Nem num livro de ficção científica escrita por um cínico se encontra essa combinação que hoje permeia a cena nacional: essa divisão de tarefas na qual um monte de gente trabalha para sustentar uma aristocracia estatal que nada faz e tem a arrogância de alardear isso como algo normal, comum em todos os países. Será que vivemos num país que conseguiu encaixar nos pagamentos rotineiros da vida pública algo que vai além dos dinheiros, pois nesse Brasilzinho de hoje a ideologia - que era o último reduto do altruísmo - virou também moeda corrente e sonante? "Um povo livre, escreve Karl Jaspers no seu "Introdução ao pensamento filosófico", sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de uma nação - continua - não é um simples espelho do povo. Deve ser o fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma vida penetrada de liberdade política." |
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
quarta-feira, junho 27, 2012
Um mundo requentado Roberto DaMatta
Arquivo do blog
-
▼
2012
(2586)
-
▼
junho
(290)
- O mundo futuro - MERVAL PEREIRA
- Dentro da noite - MIRIAM LEITÃO
- União bancária no euro - CELSO MING
- Futebol boa roupa - RUY CASTRO
- O eleitor que se defenda - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Não existe legítima defesa? - EDITORIAL O ESTADÃO
- Água e óleo - MIRIAM LEITÃO
- O Mercosul sob influência chavista - EDITORIAL O G...
- O exagero do crédito pessoal - LUIZ CARLOS MENDONÇ...
- Aventuras fiscais - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Mercosul e autoritarismo - EDITORIAL O ESTADÃO
- Hora da idade mínima na aposentadoria - EDITORIAL ...
- Teto furado - EDITORIAL ZERO HORA
- Nome de rua - RUY CASTRO
- Sarney, Lula e Maluf, ode ao amor - GUILHERME ABDALLA
- PIB minguante Celso Ming
- Cartão vermelho Nelson Motta
- Decisões do STF significam retrocessos, por Merval...
- O 'custo Lula' Carlos Alberto Sardenberg
- A Petrobrás sem Lula - ROLF KUNTZ
- Mais um refresco - CELSO MING
- Ciclo de baixa - MÍRIAM LEITÃO
- O governo vai às compras - EDITORIAL O ESTADÃO
- O mito e os fatos - MERVAL PEREIRA
- Inadimplência das empresas tem maior alta de abril...
- Hora da verdade na Petrobrás - EDITORIAL O ESTADÃO
- A leviana diplomacia do espetáculo - ELIO GASPARI
- Luz amarela - MÍRIAM LEITÃO
- O contraponto - MERVAL PEREIRA
- Sujeita a vírus - RUY CASTRO
- O crédito tem limite - VINICIUS TORRES FREIRE
- Visão Global THOMAS L., FRIEDMAN
- Realismo na Petrobrás Celso Ming
- A Petrobrás sem Lula Rolf Kuntz
- Um mundo requentado Roberto DaMatta
- Inadimplência subiu de elevador, mas vai descer de...
- Alemanha já pensa em referendo sobre resgate do eu...
- A exaustão do 'Estado dependente' de governo Franc...
- Reinaldo Azevedo -
- INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA: ORDEM/DESORDEM MUNDIAL! H...
- Paraguai soberano - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Guerra cibernética e robôs de defesa - RUBENS BARBOSA
- O BIS adverte sobre o risco do crédito - EDITORIAL...
- Crise paraguaia requer sensatez - EDITORIAL O GLOBO -
- Inflação e erros do "mercado" - VINICIUS TORRES FR...
- Democracia representativa - MERVAL PEREIRA
- Qual é a política? Celso Ming
- Uma nova política Rodrigo Constantino
- Profetas do apocalipse Xico Graziano
- O governo Dilma parece velho Marco Antonio Villa
- Como alavancar os investimentos Antonio Corrêa de...
- No ponto certo - MÍRIAM LEITÃO
- Os aloprados - PAULO BROSSARD
- O fiasco do Lula 90 - RUTH DE AQUINO
- O país já cansou de Lulas e Malufs - EDITORIAL REV...
- MACONHEIRO DE CARTEIRINHA Carlos Alberto Sardenberg
- Querem ressuscitar o baraço e o cutelo Manoel Albe...
- O afastamento de Lugo Editorial Estadão
- Mensalão e respeito ao Judiciário Carlos Alberto D...
- A Rio 20 e a crise global Rodrigo Lara
- Está o planeta aquecendo? - FERREIRA GULLAR
- Hoje, parece coisa pouca - EDITORIAL O ESTADÃO
- O intangível - MIRIAM LEITÃO
- Clima não justifica "crescimento zero" EDITORIAL O...
- Diferenças - MERVAL PEREIRA
- As infrações leves - EDITORIAL O ESTADÃO
- O inexorável pragmatismo da Silva - GAUDÊNCIO TORQ...
- No hotel Ritz - DANUZA LEÃO
- Um prefeito civilizado, por favor - VINICIUS TORRE...
- A Alemanha vai destruir a Europa - JOSÉ ROBERTO ME...
- Mítica do articulador DORA KRAMER
- Atenção para mais crise ALBERTO TAMER
- É o fim da simbiose? - economia CELSO MING
- O sonho da blindagem própria João Ubaldo Ribeiro
- Os tropeços na América Latina Suely Caldas
- Dentro da lei - MERVAL PEREIRA
- As contradições - MIRIAM LEITÃO
- Retrocesso no Mercosul isola Brasil - EDITORIAL O ...
- Rio+20, sucesso ou fracasso? - KÁTIA ABREU
- Prisões, privatização e padrinhos - PAUL KRUGMAN
- Oba-oba sustentável - GUILHERME FIUZA
- Túmulo do samba - RUY CASTRO
- Radiografia da ineficiência - EDITORIAL O ESTADÃO
- Vai ou não vai? - CELSO MING
- A QUESTÃO DAS MALVINAS!
- Uma outra visão fundamentada - RODOLFO LANDIM
- O ponto europeu - MIRIAM LEITÃO
- O enigma do emprego - CELSO MING
- O ocaso de Lula - ROBERTO FREIRE
- Estádios novos, miséria antiga - MILTON HATOUM
- Novo contrato social - MERVAL PEREIRA
- Sem entalar - RUY CASTRO
- Assalto ao trem pagador - EDITORIAL O ESTADÃO
- Como quem rouba - DORA KRAMER
- O vaivém das sacolas - EDITORIAL FOLHA DE SP
- Quem socorre Cristina Kirchner - EDITORIAL O ESTADÃO
- Bancos, crise e lebres mortas - VINICIUS TORRES FR...
- Diálogo como espécie em extinção na política Ferna...
- Andressa na cova dos leões :Nelson Motta
- O consenso do quase nada - EDITORIAL O ESTADÃO
-
▼
junho
(290)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA