O Estado de S.Paulo
Antigamente, desde os bons tempos do Banco Nacional da Habitação, no século passado, falava-se muito no sonho da casa própria, todo mundo tinha o sonho da casa própria. Hoje, quase não se escuta mais a expressão. Imagino que é porque, como verificamos todos os dias em comerciais de televisão e pronunciamentos oficiais, o governo já resolveu o problema da moradia. Os brasileiros (e brasileiras, vivo esquecendo a nova regra; atualmente, falou no macho, tem que falar na fêmea e, portanto, acostumemo-nos: alunos e alunas das escolas públicas, passageiros e passageiras do voo tal, cavalos e éguas do Jockey Club, cachorros e cadelas do Kennel Club, motoristos e motoristas, fisioterapeutos e fisioterapeutas, governantes e governantas, delinquentes e delinquentas, etc.), os brasileiros e brasileiras, dizia eu, agora são mostrados em filmetes radiosos, cheios de dentes, envergando trajes impecáveis e estampando nos rostos a felicidade. Como os demais compatriotas e compatriotos seus, já moram em espaçosas casas próprias, com área de lazer, esgoto tratado, água encanada, transporte acessível, assistência médica e tudo mais que os governos fazem pelo bem público, com os quatro ou cinco meses de nossos salários que na marra afanam. Abate-se o porcentual normal de ladroagem, de desperdício e de propaganda e o que sobra, embora por vezes não muito, é rigorosamente aplicado em investimentos e serviços públicos.
O sonho da casa própria chega perto da obsolescência (perdão por estes novos parênteses, sei que são chatos e sinal de má escrita, mas é somente uma coisinha rápida: alguma entidade malévola me sugeriu escrever "obsoletibilizado", mas segurei a mão a tempo - deve ser porque, não faz muito, ouvi entrevistados na televisão dizendo "proporcionabiliza" e "originalizou", esse negócio pega), mas outro vem ocupar seu lugar, ditado pela eterna insatisfação do brasileiro, que, depois de conseguir uma casa, ainda quer ter o direito de que ninguém a invada para furtar, violentar ou matar. Por essa razão, meu palpite, também baseado em diversas notícias e reportagens que vêm circulando, é que abraçaremos um novo sonho, bem mais moderno, qual seja o sonho da blindagem própria. O Brasil está assumindo a liderança mundial, não só na fabricação e utilização de blindagens de todos os tipos, como no desenvolvimento de tecnologias avançadas, já se prevendo a formação de uma vastíssima cadeia produtiva e comercial.
Creio que a novidade começou em São Paulo, que é onde mora o dinheiro, mas está se espalhando por todo o País. Primeiro vieram os automóveis, cujos fabricantes, em breve, certamente oferecerão (perdão mais uma vez, mas aproveito para conclamar a solidariedade dos amigos, admiradores e usuários do operoso verbo "oferecer", ora vivendo seus últimos dias esquecido e abandonado, pois que ninguém mais oferece nada e, sim, disponibiliza) modelos blindados, diretamente da linha de montagem. E algum empreendedor pode estar pensando em fechar um convênio com o Exército, para produzir a versão civil do Urutu. Blindam-se vitrines, vidraças, guichês, portarias, bilheterias, portas, paredes e, enfim, praticamente tudo. O número de firmas especializadas aumenta, o de técnicos também, declara-se um boom do blindado.
E, diz aqui um jornal, a novidade mais palpitante, no panorama geral da blindagem, é o cada vez mais cobiçado quarto do pânico. Não basta que o edifício tenha garagem, portaria e elevador blindados e que as portas e janelas do apartamento também sejam blindadas. O indispensável agora é o quarto do pânico, bastante inspirado nos abrigos contra armas nucleares que os americanos construíam no quintal, na época da Guerra Fria. No caso dos apartamentos brasileiros, é facilmente previsível uma, digamos, mudança de paradigma. As antigas dependências de empregadas, cada vez mais inúteis, agora terão seu espaço reservado para o quarto de pânico.
Nunca vi um quarto de pânico, mas sei que o essencial, evidentemente, é total blindagem contra ataques de fora. Podem atirar, tocar fogo, meter o pé de cabra à vontade, que não entram. E, lá dentro, tudo depende da imaginação e, principalmente, do dinheiro do dono. Água encanada e banheiro, claro, geladeira, alimentos para alguns dias, equipamento de comunicação com o exterior, ar condicionado, televisão e o que mais se queira. A ideia, me parece, é, ao acontecer no edifício um arrastão, ninguém ficar nervoso por causa de uma ameaça afinal tão corriqueira quanto um jacaré no Pantanal. Os moradores ganham tempo com suas portas blindadas e se socam no quarto do pânico durante dias, se for necessário, até se assegurarem de que podem sair em segurança.
Para os e as que têm muito medo de assaltos ou já passaram por um, as perspectivas não deixam de ser alvissareiras. A classe média deverá contentar-se com apenas um quarto de pânico básico, modelo econômico, mas capaz de enfrentar comodamente um arrastão de até uma semana. Já os ricos e ricas poderão ter, não quartos, mas apartamentos de pânico. Ou edifícios de pânico, ou condomínios de luxo de pânico, quarteirões de pânico, bairros de pânico. O sujeito ou a sujeita que bolar e patentear um restaurante de pânico fica milionário ou milionária, porque é meio estressante o que está acontecendo com quem vai jantar fora, sabendo que vai, mas não sabendo se volta, como os que embarcavam numa caravela do tempo de Pedro Álvares. Melhor dizendo, quem souber aproveitar as oportunidades vai dar-se bem. As perspectivas são bastante mais promissoras do que se houvesse um plano nacional de segurança pública, como muitos e muitas reclamam, sem enxergar que a blindagem gera emprego e renda, de longe superando as ações de segurança pública. E quem quiser segurança terá toda a liberdade para nunca sair do seu quarto de pânico.