O Estado de S. Paulo - 21/06/2012 |
"É um triunfo para toda a Europa" - as palavras de Antonis Samaras, líder do Nova Democracia (ND), o partido conservador que venceu por escassa margem as eleições gregas, simultaneamente revelam e ocultam a verdade. A coleção heteróclita de partidos contrários ao memorando de austeridade firmado com a União Europeia teve o respaldo da maioria dos eleitores. O eleitorado que conferiu ao ND o direito de formar uma coalizão de governo moveu-se sob a espada da chantagem: a alternativa, exposta quase explicitamente pela alemã Angela Merkel, era a saída forçada do euro - e a fusão do que resta da economia grega. "Eleições não podem colocar em questão os compromissos assumidos pela Grécia", alertou Merkel, num recado direto ao partido vencedor. No horizonte de semanas, a coalizão de Samaras deve promover novos cortes nos gastos públicos, para adaptá-los aos "compromissos assumidos", agravando uma depressão econômica sem fim. Seu governo pode não sobreviver a tal prova. O Syriza, partido de esquerda que rejeita o memorando, tinha menos de 5% dos votos no início da crise do euro. Há um mês, obteve 17% e, no domingo, 27%. Samaras apelou à formação de um "governo de salvação nacional", pela via da unidade de todos os grandes partidos, mas o Syriza se recusou a avalizar o memorando. O "triunfo para toda a Europa" não é mais que uma estreita janela de oportunidade. Há 15 anos, às vésperas da introdução do euro, o economista Nouriel Roubini, que se tornou célebre mais tarde por prever a crise financeira global de 2008, sugeriu o cancelamento da união monetária. Como muitos outros, Roubini apontava a inconsistência de uma zona monetária submetida às forças centrífugas decorrentes do diferencial de produtividade entre as economias europeias e, ainda por cima, não sustentada por uma união fiscal. Há pouco, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira ofereceu como solução para a crise do euro a dissolução da união monetária e a restauração das antigas moedas nacionais. Roubini e Bresser Pereira abstraem a História: a moeda única, tanto quanto a própria União Europeia, é um fruto de Hitler, não o produto da mente dos economistas. "A União Europeia foi criada para evitar a repetição dos desastres da década de 1930", escreveu o mesmo Roubini, em parceria com Niall Ferguson, num artigo recente, publicado no semanário Der Spiegel, que não comete o erro de circundar a História. "Europa", no sentido atual do termo, é o conjunto de intercâmbios destinados a dissolver a rivalidade franco-alemã que provocou as duas guerras gerais do século 20. A barganha fundadora, idealizada por Jean Monnet e aceita por Konrad Adenauer em 1951, colocou a siderurgia alemã sob autoridade plurinacional, na hora da criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e do rearmamento da Alemanha Ocidental. A barganha seguinte, quatro décadas depois, foi articulada por François Mitterrand e aceita por Helmut Kohl: a união monetária soldaria a aliança do pós-guerra, afastando o persistente espectro da "Europa alemã". O euro nasceu de um imperativo político, como solução para o problema da reunificação alemã. É por isso, não por seus discutíveis méritos econômicos, que ele deve ser preservado. "É algo extraordinário que seja a Alemanha, entre todos os países, a desconhecer as lições da História. Hipnotizada pela inexistente ameaça da inflação, a Alemanha de hoje parece conferir maior importância a 1923 (o ano da hiperinflação) que a 1933 (o ano em que a democracia morreu)", escreveram Roubini e Ferguson. É pior que isso: a fixação de Merkel nas políticas de austeridade extrema reflete uma interpretação nacionalista alemã sobre a União Europeia. A narrativa, que contrasta com o que pensavam os também democrata-cristãos Adenauer e Kohl, descreve o projeto europeu como uma chantagem permanente contra a Alemanha. Segundo tal tese, o euro teria sido contaminado pela inclinação dos outros - da Grécia, de Portugal, da Espanha e também da França - de viver além de seus meios, na crença de que, no fim de tudo, a Alemanha pagaria a conta. A falha intelectual da tese tem escassa relevância diante das suas consequências políticas. Os planos radicais de austeridade impostos por Berlim nos últimos anos não apenas fracassaram na esfera econômica, aprofundando a estagnação e ampliando as dívidas, mas produziram uma crise política com o potencial de arruinar a própria União Europeia. O aspecto mais óbvio dessa crise se manifesta na escala dos sistemas políticos nacionais, pela desmoralização dos partidos tradicionais e pela ascensão de correntes extremistas, à esquerda e à direita, que contestam a "Europa" em nome da nação. Abaixo da superfície, contudo, a crise desgasta as engrenagens geopolíticas que sustentam a União Europeia. Dias atrás, o ministro da Economia Social da França, Benoît Hamon, disparou projéteis contra a Alemanha, acusando-a de operar como "lobo solitário" na Europa, praticando políticas de aumento da competitividade nacional que minam as redes de proteção social erguidas nos demais países. Hamon fala aquilo que François Hollande não pode dizer, escancarando a estratégia francesa de organizar uma coalizão europeia de resistência à orientação de Merkel. A solidariedade franco-alemã, motor do projeto europeu, já não existe mais. No lugar dela, ressurgem sob disfarces cada vez mais diáfanos os discursos do ressentimento nacional. O euro será salvo - ou perecerá - na esfera da política. De Atenas, enquanto a Grécia continua a dançar à beira do abismo, parte uma mensagem decisiva dirigida à "Europa". Os gregos votaram contra o desmantelamento instantâneo de sua economia, mas não se curvaram à perspectiva de um longo, inexorável, empobrecimento nacional. Eles estão dizendo que a "Europa" tem uma oportunidade final para reverter a política destrutiva da austeridade permanente. Berlim deveria escutá-los. |
Entrevista:O Estado inteligente
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