Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 08, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO Guerra tecnológica

O GLOBO


Olho para o relógio e estranho o que vejo. Por hábito muito pontual, meu amigo já estava atrasado mais de dez minutos. Da primeira vez em que telefonei, chamava e ninguém atendia. Imaginei então que ele estivesse a caminho, o que lhe tomaria uns dois minutos adicionais.

Mas ele demorou ainda mais. Novos telefonemas e nada. Talvez eu devesse dar um telefonema final e, como determinam as boas normas entre coroas, dos quais volta e meia um cai duro para trás, verificar pessoalmente o que se passava. Não sem um pequeno suspense, esperei o telefone tocar e, somente no quarto toque, ele atendeu.

— É ele! É esse desgraçado, essa desgraçada! Estava o tempo todo aqui, claro que só podia ser ela, mas o toque parece que vem das paredes, é uma espécie de assombração.

— Tenha calma, o que é que houve, tem alguém aí com você? — Não! Tem! Não, tem essa bola, eu estou falando numa bola de futebol.

— Está falando no quê? — Numa bola de futebol, bola de futebol! O telefone é uma bola de futebol.

— O telefone é uma bola de futebol? Como assim, uma bola de futebol? — Você entende bola de futebol? Pois então, pois é isso mesmo, uma bola de futebol. Pelo jeito, deve dar até pra jogar, mas no momento eu estou falando nela, o telefone desta casa de maluco é uma bola de futebol.

Quer dizer, um dos telefones desta casa, porque aqui agora tem mais telefone que a Nasa.

— Mas eu só tenho esse número e você deixou de atender a várias chamadas.

— Você já procurou um telefone no meio de uma sala bagunçada e esse telefone era uma bola de futebol? — Tudo bem, é que foram várias tentativas.

— Eu ouvi as primeiras, lá de fora.

Mas não conseguia abrir a porta, me enrolei todo.

— Você não disse que seu genro aboliu as chaves e que agora a chave é pela impressão digital? — É, mas eu nunca sei de qual é o dedo. Acho que, assim numa reação meio instintiva, eu sempre parto do dedo médio da mão direita e aí, se você não acerta isso, tem uma sequência de dedadas de segurança, que eu nunca acerto, é pior que raiz cúbica.

Se lembra do tempo em que a gente tirava raiz cúbica na munheca? Eles pegam moleza esses caras de hoje, nem tabuada eles sabem mais, aí ficam inventando essas assombrações.

Eu parecia um sanfoneiro ligadão, misturando os dedos naquele negócio.

Sempre acho que vão me eletrocutar ou me mandar para Alcatraz.

— Alcatraz não é mais cadeia.

— Então Sing-Sing, qualquer uma dessas de cinema, onde o cara entrava e o James Cagney cobria ele de porrada. Bem, acho que é melhor eu descer. Já está na hora e a verdade é que não me sinto bem, falando numa bola de futebol, acho meio constrangedor.

Se você estivesse me vendo agora, saberia o que quero dizer.

Assegurei-lhe que me solidarizava com ele e encontrei-o bem menos nervoso do que eu esperava. A experiência com o telefone bola de futebol ainda o marcava um pouco — literalmente, marcas de cadarço no rosto. Mas, fora isso, era subitamente um novo homem. Puxou do bolso um vistoso aparelho eletrônico e o contemplou à distância de um braço estendido.

— É um celular? — É bem mais que um celular, eu nem sei direito o que ele fez, faz tudo.

— Mostre uma coisa aí.

— Bem, se eu apertar este botão verde aqui, ele me dá a velocidade do vento e a temperatura em Montreal.

Aí, se eu aperto outro botão, ele apaga.

Aí eu aperto o verde, vem Montreal etc. Devem ter contrabandeado isso lá do Canadá. Mas ele vai servir mais tarde, tudo a seu tempo.

No breve período entre o telefonema futebolístico e sua vinda até ali, chegara a uma conclusão lógica. Já devia ter percebido que São Judas Tadeu não lhe falharia nesse transe, ele era que estava cego para o que agora se exibia, luminoso como o sol. Não era, afinal, tarefa impossível botar para fora de casa o genro sopeiro, que nem pobre era e que viera para ficar somente até seu apartamento ser entregue e já durava três netos, seiscentos churrascos acafajestados e mais engradados de uísque do que um armazém de carga em Glasgow. Nada de usar argumentos racionais e muito menos entrar em verdadeiros arrancarabos domésticos, como já acontecera, trazendo como única sequela uma infinidade de trombas femininas e adolescentes pela casa toda e quem já enfrentou trombas desse quilate sabe como elas são temíveis.

Na próxima segunda-feira iniciará seu treinamento com um personal technologist.

O especialista contratado neutralizará todos os 58 controles remotos da casa, com exceção dos três que o contratante sabe usar. Em seguida, centralizará o Pay Per View num comando e quem quiser assistir pagará à vista, notadamente os amigos duros do genro, que podem passar o tempo que quiserem falando pela bola de futebol com a operadora, sem adiantar nada.

— E isto é somente o começo — disse ele, examinando o celular outra vez . — O tempo em Montreal está muito bom.

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