Trecho de A Vida Secreta do Senhor de Musashi, de Junichiro Tanizaki Livro 1 SOBRE OS ESCRITOS DA MONJA MYÔKAKU, "SONHO DE UMA NOITE", E OS MANUSCRITOS DAS MEMÓRIAS DE DÔAMI Não há como saber precisamente a identidade da monja Myôkaku ou quando ela escreveu "Sonho de uma noite", mas fica evidente por meio de seus escritos anteriores e posteriores à referida obra que, num certo período, essa senhora serviu como empregada na casa do senhor de Musashi. Depois da queda do clã, raspou a cabeça e foi viver em retiro "numa cabana de sapé no meio de remotas montanhas, onde não havia nada a fazer a não ser orar dia e noite por Buda", conforme suas próprias palavras. Dessa maneira, conclui- se que foi na ociosidade da idade avançada que ela registrou suas memórias. Mas, afinal, com que objetivo uma monja "sem nenhum empreendimento a não ser orar por Buda" teria resolvido escrever suas memórias? De acordo com sua própria explicação: Depois de ponderar a conduta do senhor de Musashi, compreendi que neste mundo os homens não se dividem entre bons e maus, heróis e vulgares. O inteligente pode ser por vezes banal, o corajoso pode ser fraco, e aquele que no passado esmagou milhares de inimigos em batalhas será agora assaltado em sua própria casa pelos demônios do inferno. Da mesma forma como a mais formosa das mulheres pode mostrar um temperamento feroz, o mais valoroso guerreiro pode subitamente virar uma besta hedionda. Quem sabe o senhor de Musashi não tenha sido o espírito reencarnado do piedoso Buda, que renasce neste mundo de tempos em tempos, graças ao ciclo do samsara, para libertar-nos das ilusões, e que usou o próprio corpo para demonstrar a inexorável lei de causa e efeito? A monja conclui ainda que: ... incorporando os tormentos do inferno em seu próprio corpo sagrado, o senhor de Musashi mostrou-nos, a nós, mortais comuns, o caminho da iluminação. Sua existência foi uma bênção para todos nós. Escrevo este relato de suas ações com sentimento de gratidão pelo seu espírito gentil e como uma oferenda em favor da tranquilidade de sua alma. Esse é meu único objetivo. Se houver quem ridicularize ou desdenhe o comportamento de meu amo, amaldiçoado seja. Pessoas de discernimento sentirão apenas gratidão. Seus argumentos parecem um pouco artificiosos, porém, e certos indícios nos fazem suspeitar que talvez não acreditasse nas próprias explicações. Ela nunca se casou e, portanto, é claro que suas necessidades físicas nunca foram satisfeitas. Uma das suposições é que tenha escrito tudo aquilo para tentar aliviar a própria solidão. Mas isso é mera especulação. O autor de "Confissões de Dôami", por outro lado, não deixou nenhuma pista sobre suas motivações, mas é óbvio que tam- pouco pôde apagar da memória os "atos terríveis do meu amo" ou sua própria e extraordinária experiência estando a serviço dele. Não resta dúvida de que, quanto mais refletia sobre tais experiências, mais elas lhe pareciam estranhas, e, no fim, não resistiu à tentação de registrar tudo no papel. Enquanto a monja Myôkaku chegava à feliz porém improvável conclusão de que o senhor de Musashi era a reencarnação de Buda, Dôami parece ter tido uma clara percepção do processo mental de seu amo, e como resultado teria conquistado a total confiança dele. De tempo em tempo seu senhor lhe revelaria sua angústia interior, confidenciando a história de seu apetite sexual desde a infância, em busca de compreensão e cumplicidade. Pensando bem, Dôami era um homem com certo pendor à adulação, e talvez tenha aceitado a perversão do amo como algo inerente à natureza daquele, ou, se não foi isso, apenas fingiu aceitá-la, no início para agradá-lo e depois, no decorrer do processo, teria sucumbido, deixando-se converter. De toda forma, é incontestável que Dôami se tornou um companheiro indispensável no "paraíso secreto" de seu amo. Sem Dôami é possível que os jogos sexuais daquele não tivessem trilhado um curso tão perverso, e por essa razão ele alguma vez amaldiçoou a existência de Dôami. Era frequente o senhor repreender Dôami, chegando a bater nele, e por vezes, ao que parece, esteve perto de liquidá-lo com a espada. Dôami, porém, foi um homem de sorte: entre os homens e as mulheres que participaram dos "jogos" do senhor, raríssimos conseguiram escapar com vida. Por ser o mais vulnerável, Dôami deve ter encarado a morte mais vezes do que ninguém. Não tenho dúvida de que escapou da jaula dos leões tanto por ser querido como por ser odiado. Mais do que tudo, pode-se dizer que sua sobrevivência só aconteceu graças a sua vigilância e tato. SOBRE A ARMADURA DE TERUKATSU, SENHOR DE MUSASHI, E O RETRATO DA DAMA SHÔSETSUIN
O retrato agora em posse dos descendentes do clã Kiryu mostra Terukatsu sentado de pernas cruzadas sobre a pele de um tigre, paramentado com armadura peitoral em estilo europeu, placas de ombreiras tecidas com fios pretos, e calçando botas de couro. No alto do elmo, chifres enormes aparentando ser de búfalo apontam para cima. A mão direita segura um bastão de comando feito de couro trançado; a mão esquerda espalmada sobre a coxa está tão aberta que o dedão alcança a bainha da espada. Se ele não estivesse de armadura, seria possível ter-se uma ideia de sua compleição, mas com todos aqueles paramentos, por infelicidade, apenas a face ficava visível. Não é raro ver heróis do período das guerras civis, como ele, vestindo armadura completa, e o retrato de Terukatsu é bastante similar àqueles onde aparecem Honda Heihachiro e Sakakibara Yasumasa nos livros de história. Todos eles nos transmitem uma impressão de severidade e grande dignidade, mas ao mesmo tempo mostram uma desconfortável rigidez e formalidade no modo como levantam os ombros. Fontes históricas revelam que Terukatsu morreu com quarenta e dois anos. De certa forma ele parece mais jovem no retrato, talvez entre trinta e cinco e quarenta anos. Com bochechas redondas e queixo quadrado, sem dúvida não é feio, embora seus olhos, nariz e boca sejam desproporcionalmente grandes. Em todo caso, o rosto é a imagem exata de um líder austero e autoconfiante. Os olhos bem abertos, fixos à frente, brilham encolerizados logo abaixo da base do elmo. Entre os olhos e acima do nariz vê-se uma dobra na pele, cortada horizontalmente por um vinco profundo que parece um segundo nariz mais achatado. Vincos profundos vão das laterais das narinas até os cantos da boca, dando-lhe uma expressão irritada, como se tivesse acabado de lamber uma coisa amarga. Exibe um bigode desalinhado e cavanhaque, bem no estilo da época. Esse rosto impressionante seria bem menos impactante não fosse o elmo. Além dos esplêndidos chifres, há uma crista no alto com a figura de Taishakuten, o guardião budista do Leste, esmagando um demônio com o pé. A armadura peitoral em estilo europeu também é impressionante. Não sou nenhuma autoridade no assunto, mas parece que a armadura europeia foi introduzida no Japão pelos holandeses e portugueses entre 1530 e 1540, época em que as primeiras armas de fogo chegaram a Tanegashima. A armadura tem formato de peito de pomba: como um pêssego, ela infla na direção da linha divisória do centro, e a borda da base faz uma curva para cima e segue até as costas. Os guerreiros daquele período tinham muito apreço por esse tipo de armadura peitoral, tanto que muitas imitações começaram a ser manufaturadas pouco depois de sua introdução, e portanto não é de estranhar que Terukatsu envergasse uma delas. Ainda assim, por que teria escolhido aquela armadura em particular para ser retratado? Não sabemos se ele mesmo encomendou o retrato ou se alguém pintou sua figura de memória após sua morte. Qualquer que seja o caso, porém, o retrato deixa evidente, imagino, que aquela armadura peitoral em estilo europeu era a favorita de Terukatsu. Se alguém olha o retrato conhecendo o senhor de Musashi apenas pelo que está registrado nos livros de história, verá apenas o retrato de um herói, semelhante àqueles que representam Honda Tadakatsu e Sakakibara Yasumasa. Mas quem está ciente das fraquezas do personagem e investigou os segredos de sua vida sexual haverá de detectar (ou será apenas imaginação minha?) uma certa ansiedade por trás da fachada imponente-a angústia da alma oculta no interior da armadura ameaçadora-, e a imagem se revelará impregnada de inexprimível melancolia. O olhar fulgurante, por exemplo, os lábios cerrados com força, o nariz irado e a posição dos ombros inspiraria num espectador do retrato a mesma ansiedade produzida pela imagem de um tigre sedento de sangue. E mesmo assim, visto por outro ângulo, Terukatsu pode muito bem ser um homem que sofre de reumatismo lutando para suportar uma torturante dor nos joelhos. A armadura peitoral em estilo europeu, o elmo com os chifres altaneiros e a crista de Taishakuten também nos fazem pensar. Talvez o intimidante paramento tenha sido uma escolha deliberada para esconder a fraqueza interior. O efeito de tais acessórios, contudo, só contribui para deixar ainda mais desajeitado e artificial o personagem de postura rígida. A armadura de peito de pombo pareceria menos desconfortável se Terukatsu estivesse sentado numa banqueta em estilo ocidental, mas o fato de ele estar sentado de pernas cruzadas ressalta ainda mais sua inadequação. Nada indica a presença, por baixo da armadura, da massa muscular que deve estar ali, cultivada em duras batalhas. A armadura não adere ao corpo como deveria, e parece independente dele. Longe de proteger sua pessoa e instilar temor nos inimigos, mais parece um conjunto de grilhões infligindo-lhe uma tortura sem fim. Vista por esse prisma, a expressão do rosto denuncia uma angústia tocante, e a figura do bravo guerreiro coberto por sua armadura passa a evocar um prisioneiro a gemer desesperado dentro de sua veste. Um olhar cínico poderia interpretar a decoração no alto do elmo, a figura de Taishakuten posando triunfal com o pé sobre o demônio, como símbolo da coragem do nobre guerreiro, enquanto o repugnante demônio, fazendo caretas e cruelmente esmagado no chão, seria a outra face, vergonhosa, de sua personalidade. Claro que o artista, ao produzir a obra, não teve essa intenção. Provavelmente não fazia ideia da vida secreta do nobre e limitou-se a pintar um retrato fiel. |