A atualidade de Charles Darwin
Três novos livros somam-se às comemorações do nascimento
do pai da teoria da evolução, mostram a perenidade de suas
ideias e revelam como elas ainda ajudam a ciência a avançar
Diogo Schelp
Bettmann/Corbis/Latinstock | ELE VIU PRIMEIRO |
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• Trecho: A Ilha de Darwin |
As comemorações dos 200 anos do nascimento do naturalista inglês Charles Darwin e dos 150 anos da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, foram tisnadas pela falsa mas ardente disputa entre criacionistas e evolucionistas. Os primeiros creem na versão bíblica de que o ser humano é uma criação divina, um anjo decaído feito à imagem e semelhança de Deus. Os segundos defendem o princípio científico darwinista de que, assim como todos os outros seres vivos, os humanos atuais são o produto de milhões de anos de um processo de seleção natural. Entre os darwinistas se contam ferozes prosélitos do ateísmo, como o biólogo britânico Richard Dawkins e o filósofo americano Daniel Dennett. Três livros recém-chegados às livrarias dão ao leitor a oportunidade de se desintoxicar desse embate estéril entre ciência e religião, que produz muito calor e nenhuma luz. Origens e A Evolução (Unesp; 312 e 352 páginas; 59 reais cada um) trazem uma preciosa seleta da correspondência de Darwin entre 1822 e 1870. São indicados para quem já está familiarizado com a obra do naturalista. Na linguagem elegante e polida esperada de um inglês educado do século XIX, Darwin revela detalhes de sua vida e avança drásticos julgamentos sobre os povos e países que visitou. No Brasil, onde passou vários meses, Darwin se surpreendeu com o fato de todas as cargas serem carregadas no lombo de escravos e, ironicamente, diz suspeitar que "os brasileiros desconheciam a invenção da roda".
O terceiro lançamento, A Ilha de Darwin (Record; 376 páginas; 57,90 reais), é um trabalho ao mesmo tempo atraente para iniciantes e iniciados. O autor, Steve Jones, da University College London, é um dos mais respeitados geneticistas do mundo (veja entrevista abaixo). Jones dispensa de cara, por enfadonha, a discussão atual travada em torno da resistência da ideia religiosa do criacionismo. Seu propósito é revelar o que há de atual nas ideias do pai da biologia evolutiva e quanto a ciência avançou em relação às suas descobertas. Jones conclui que a teoria original de Darwin produziu uma frondosa árvore de conhecimento que permanece atual, viva e muito produtiva.
O título A Ilha de Darwin é uma referência à Inglaterra, de onde o pesquisador nunca mais saiu depois de voltar de sua famosa viagem de cinco anos pelo mundo a bordo do Beagle. Jones sustenta que as pesquisas de Darwin na Inglaterra foram tão relevantes para a elaboração de sua teoria quanto as observações feitas por ele nas Ilhas Galápagos, nas matas e nas cordilheiras da América do Sul, na África e na Austrália. Jones calcula que Darwin passou 2 000 noites fora de casa, coletando e classificando obcecadamente flores e insetos das Ilhas Britânicas, em especial seus adorados besouros. A Ilha de Darwin fixa-se em onze dos dezenove livros publicados pelo naturalista ao longo de quarenta anos, muitos deles responsáveis por inaugurar ramos inteiramente novos da biologia. As observações de Darwin são tão exatas, suas coleções de espécimes tão completas e suas conclusões tão pertinentes que ele teria sido lembrado como um gênio da ciência mesmo que nunca tivesse colocado de pé a teoria da evolução. Jones mostra que ele criou as bases teóricas da botânica moderna. Revela a grandeza de seus estudos sobre o melhoramento dos plantéis agropecuários, os experimentos comportamentais dos animais e as reações das plantas às estações do ano. Esse último trabalho abriu caminho para a descoberta, em 1880, do papel dos hormônios no ciclo das plantas.
O Homo sapiens já o interessava. Em A Expressão das Emoções, Darwin estudou o sentimento associado aos movimentos dos músculos do rosto e aos gestos humanos, comparando-os com os de outros bichos. Entre outras descobertas, o naturalista percebeu que até bebês cegos sorriem, um indício de que não aprenderam a expressão por imitação. O cientista concluiu, corretamente, que essa é uma capacidade inata, de origem ancestral. A anatomia facial tinha a função de comunicar sentimentos a outros indivíduos da mesma espécie. Mais de um século depois, muitas das conclusões de Darwin nesse campo continuam de pé. Seu livro sobre as emoções – uma das primeiras obras científicas que estampavam fotografias em suas páginas – forneceu os elementos iniciais para a psicologia evolutiva, muito em voga hoje, que busca entender as bases biológicas do comportamento humano. Também as atuais técnicas de detecção de mentira baseadas em expressões faciais se valem de princípios primeiramente observados pelo naturalista inglês. E Jones argumenta que mesmo as pesquisas mais avançadas da neurociência seguem a senda aberta por Darwin: ele buscou mapear os sinais externos das emoções, enquanto os pesquisadores de hoje utilizam equipamentos de ressonância magnética para encontrar os mesmos sinais no cérebro.
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O LABORATÓRIO |
"Não são os pensamentos mais profundos aqueles que por mais tempo influem no mundo", observou o escritor búlgaro Elias Canetti (1905-1994) em um texto sobre Darwin. O naturalista inglês não queria mesmo ser "profundo". Não tinha pretensão de resolver questões filosóficas sobre a existência humana. O que movia Darwin era a curiosidade prática de entender o funcionamento de diferentes formas de vida, e o porquê de elas serem como são. "Quando deparava com uma questão científica – sobre sexo ou qualquer outro assunto –, ele buscava não especular, mas descobrir", escreveu Jones. Um drama pessoal levou-o a produzir três obras inovadoras sobre a fertilização das plantas. Darwin era casado com uma prima de primeiro grau e com ela teve dez filhos. A morte de dois deles ainda na infância levou-o a debruçar-se sobre os efeitos do casamento endogâmico na saúde da família. Sua preocupação foi confirmada nos experimentos feitos na estufa em Down House, sua casa nos arredores de Londres, onde viveu por toda a vida desde que desembarcou do Beagle. Ao fecundar plantas com o pólen delas próprias, Darwin constatou que as gerações seguintes eram, em geral, mais débeis. Sua conclusão foi que "a fertilização cruzada é benéfica, enquanto a autofecundação é prejudicial". Steve Jones mostra, em seu livro, que análises recentes das sequências de DNA humano comprovam o risco de procriação entre parentes próximos, embora, à luz da genética moderna, isso seja menos determinante do que supunha Darwin.
Ao conectar o conhecimento científico atual diretamente com as várias descobertas do naturalista inglês, A Ilha de Darwin reafirma a validade incontestável da teoria da evolução. Em alguns momentos, no entanto, Jones funde de tal forma as teses de Darwin com as revelações mais recentes da ciência que fica difícil saber onde terminam umas e começam as outras. Essa relativa confusão cronológica, porém, acaba reforçando o argumento central do livro: Darwin estava quase sempre certo.
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O SORRISO ELÉTRICO |
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STEVE JONES |
"Nem tudo é evolução"
Steve Jones, de 65 anos, é professor de genética da University College London, na Inglaterra, e autor de A Ilha de Darwin. Ele deu a seguinte entrevista a VEJA:
Como Darwin conseguiu, valendo-se apenas da observação simples, explicar fenômenos naturais que só tiveram confirmação científica definitiva recentemente, com a genética moderna?
Darwin era um homem com uma teoria, o maior atributo de um cientista. Durante sua viagem à América do Sul, ele observava a natureza com perspicácia, mas não tinha uma teoria. Só depois que voltou à Inglaterra e concebeu uma ideia original Darwin pôde juntar os diferentes fenômenos observados durante sua vida e dar-lhes uma unidade. Todos os livros que escreveu depois de A Origem das Espécies são complementos de luxo à obra famosa que inaugurou as ciências biológicas.
Que relevância teve a passagem de Darwin pelo Brasil para sua teoria da seleção natural?
O que ele viu no país está no centro de suas conclusões. Ao contrário do que se costuma dizer, o Brasil e o Chile foram muito mais importantes para sedimentar o conhecimento que resultou na teoria da seleção natural do que as Ilhas Galápagos. Darwin passou cinco semanas em Galápagos e pisou em terra firme apenas durante metade do tempo. Sua estada no Brasil durou vários meses.
O que Darwin diria sobre a psicologia evolutiva, uma área de estudo inspirada na teoria da seleção natural?
Creio que, assim como eu, ele teria um pé atrás com esse tipo de estudo. O que os psicólogos evolutivos fazem é redescobrir o óbvio. Todos sabem que homens velhos gostam de mulheres jovens. E que as mães amam seus filhos. Comportamentos como esses são apresentados como se fossem grandes novidades. Mas são evidentes. E há um certo exagero na tentativa de provar que tudo na sociedade tem origem evolutiva. Um exemplo desagradável: pela lógica da evolução, o estupro pode ser compreendido como uma forma mais eficiente de um macho propagar os seus genes. No entanto, a evolução também nos deu consciência, com a qual podemos decidir que a maneira correta de se comportar não é sair por aí violentando mulheres. Isso prova que explicações evolutivas sobre certos comportamentos humanos são muitas vezes incorretas, inúteis e, na melhor das hipóteses, ingênuas. Nem tudo é evolução.
Darwin ensinou a humanidade a ser mais humilde em relação a seu lugar no mundo, ao revelar sua origem comum com a dos outros seres vivos?
Isso é apenas em parte verdade. Em muitos aspectos, Darwin nos deu instrumentos para sermos ainda mais arrogantes, ao reforçar aquilo que nos distingue dos outros animais.