O Globo
Meu ponto de partida são dois fatos paradoxais. O primeiro é o de eleger um país procrastinador como o Brasil, que só libertou seus escravos anteontem e até hoje adora salvadores da pátria em vez de construtores de instituições, como dono da Copa do Mundo de 2014, tendo — ademais— o Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. O segundo é o de dar ao senhor da guerra, o presidente dos Estados Unidos, país que tem uma guerra para cada geração e a capacidade de destruir o mundo, o Prêmio Nobel da Paz. Eis um outro desafio positivo que obriga — como no caso do Brasil — a lembrar o que se quer esquecer e a esquecer o que se deseja lembrar. Ou seja: o número infinito de colunas que, por cima de outras colunas, ajudam a suportar o insuportável.
Inspira-me uma história atribuída ao filosofo inglês Bertrand Russel e repetida pelo meu eminente colega Clifford Geertz, que conheci em Princeton e me impressionou pela timidez, em contraste com o escritor loquaz, talvez por se encontrar diante da raridade de um antropólogo brasileiro.
Eis a história: Um jovem cientista pronunciava (na Índia, terra de todas as (im)possibilidades), uma conferência na qual expunha como a terra girava em torno do sol e como, por sua vez, o sol orbitava o centro de uma vasta coleção de astros chamada galáxia.
Quando terminou a palestra, uma velhinha que estava no fundo da sala, reagiu: “O que o senhor nos contou é absurdo! O mundo é, na realidade, uma folha apoiada nas costas de uma tartaruga gigante.” O cientista deu o troco com um sorriso de superioridade: “Mas minha senhora — disse em estilo PhD — onde se sustenta essa tartaruga”? “Você é, de fato, muito inteligente — retorquiu a velhinha. — Em outra tartaruga, é claro!”; e, adivinhando a próxima pergunta do estrangeiro, ela fechou: “E daí para baixo, doutor, só tem tartarugas sobre tartarugas sobre tartarugas...” Repetir é humano. É, dizia Thomas Mann, um modo de abolir a diferença entre “ser” e “ter sido”. É eliminar, como aprendi com Claude Lévi-Strauss e reaprendo com um autêntico (e raríssimo) mestre-pensador da antropologia social brasileira contemporânea, Eduardo Viveiros de Castro, o estranhamento determinado pelo inexorável seguir do passado para o presente e daí para o futuro que, conforme descobrimos se recebemos o dom de passar dos setenta anos, transcorre rápido demais para essa corajosa e incrivelmente heróica consciência do mundo cuja finalidade é, entre outras coisas, ser obrigada a apaziguar o tempo.
Quem se lembra de tudo, como aquele famoso herói de Borges, transforma-se — como Capitu — num caso de polícia, digo, literário.
Se os eventos têm todos o mesmo peso e não podem ser classificados como mais ou menos dramáticos, não há alternância e não se obtém o que chamamos de gente ou pessoa. As identidades que muito de perto não existem, ou existem em demasia, se fazem justamente nessas escalas de repetições e sustentações: de memorizações e de esquecimentos.
Há a terra dos mortos e a dos vivos.
Mas há também a terra dos que lembram e a dos que esquecem de lembrar, como na maravilhosa música “Remember”, de Irving Berlin, que diz: “Você jurou jamais me esquecer, mas você se esqueceu de lembrar” que, neste exato momento, chega forte na minha memória, na voz de Billy Eckstein.
O fosso intransponível — exceto para bruxos como eu e alguns outros xamãs — que separa a terra dos vivos da dos mortos é parecido com essa bizarra terra dos que, por um terrível distúrbio, esquecem de lembrar.
Não é que não se lembrem de coisa alguma. Não! É que eles sofrem da ausência deste dado básico, constitutivo da recordação, que é o lembrar do lembrar, o lembrar de esquecer e o esquecer de lembrar. Por isso, não podem mais usar o tempo como cúmplice e aliado. Entram nos quadros dos que não sentem saudade, pois estão incapacitados de transformar momentos de dor e amargura que precisam ser esquecidos em memórias generosas, demarcadoras do amor que deve ser o sumo de todas as vidas. Perdem, como o herói de Borges, a capacidade de dar peso ao que lembram porque esquecem antes de lembrar, mostrando como é mesmo complicado e ilusório viver apenas no presente. Estamos condenados ao passado e ao futuro que fazem o nosso presente: esse fio de malabarista do qual volta e meia caímos estrondosamente.
Crescer (ou seja: ir rumo ao passado ou ao futuro) é muito difícil.
Um amigo e leitor, cuja esposa sofre de Alzheimer, falou-me dessa experiência não como um “mal”, mas como um caso oblíquo, de lidar com as temporalidades e com a repetição.
Com aqueles seus olhos velhos, vivos e lacrimejantes de pena de si mesmo e dos outros, ele comparou sua companheira de vida a um viajante que dentro do trem abandona a viagem. Perde o estranhamento das novidades que passam pelas janelas e não escolhe mais onde descer. Como os contadores de história quando perdem a noção do inicio meio e fim da história que estão contando. E sequer entendem que essas pausas memoráveis onde o presente remete ao passado e vice-versa, esse estofo dos mitos e das parábolas, é o ponto onde a lembrança vira saudade.
Pois é contando que tentamos evitar o passaporte para o qual todos nós — nobres ou pobres, com ou sem biografia, sendo o “cara” ou um merda — estamos fadados a receber.
O da entrada naquele território dos esquecidos no qual, antes mesmos de termos nascidos, temos plena cidadania
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