Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 10, 2009

O Desinformante!, com Matt Damon

Minto, portanto existo

O Desinformante! trata de um homem que enrolou o FBI em
um novelo de invenções. Para o diretor Steven Soderbergh,
ele apenas manifestou de forma extrema uma necessidade básica
de qualquer ser humano: a de se apresentar aos outros sob disfarce


Isabela Boscov

Everett Collection/Grupo Keystone
NA VERDADE...
Damon, como o bioquímico Mark: até sua especialidade profissional, o milho, vive de se disfarçar em outras coisas

VEJA TAMBÉM
Jovial, simpático e falante, Mark Whitacre (Matt Damon) era um dos vice-presidentes da gigante dos derivados do milho ADM quando entrou na órbita do FBI. Mark avisou a direção da sua empresa que os rivais japoneses tinham um espião em suas fileiras, e que este vinha contaminando sua produção. A direção resolveu notificar os agentes federais. Um deles, o honesto e paciente Brian Shepard (Scott Bakula, em rara oportunidade de mostrar o grande ator que é), foi à casa de Mark entrevistá-lo e saiu de lá com um caso para fazer história nas investigações de fraudes corporativas: segundo o executivo, o verdadeiro problema é que sua empresa e as concorrentes internacionais se reuniam periodicamente para lotear o mercado entre si e fixar preços. Ou seja, formavam um cartel. Nos anos seguintes, o ebuliente Mark gravou conversas e reuniões em áudio e vídeo, forneceu documentos e revelou histórias aos agentes federais. Muitas histórias, e quase nenhuma delas verdadeira, como descobriu o FBI no momento em que começou a efetuar prisões. E depois descobriu de novo, e mais uma vez, e outra ainda: Mark Whitacre, o protagonista de O Desinformante! (The Informant!, Estados Unidos, 2009), que estreia no país na próxima sexta-feira, era (e talvez ainda seja) um mitômano. Começou a mentir quando criança e nunca mais parou, criando camadas de invenções que se sobrepunham e se entrecruzavam, abarcando todos os aspectos de sua vida.

É possível argumentar que um homem que usa um topete falso está dando uma pista inequívoca de que acredita poder enganar os outros sobre qualquer coisa. Mas, na encenação muito divertida do diretor Steven Soderbergh, as perucas de má qualidade são regra entre os executivos do agronegócio em Decatur, no estado de Illinois, uma daquelas cidades maçantes do Meio-Oeste americano. São todos indignos de crença, ou não? Como até os penteados vêm politizados, pode-se ter a impressão de que O Desinformante! é uma denúncia da ganância corporativa. A má conduta da ADM, porém, é um dado periférico. O que fascina Soderbergh é a indevassável vida interior de Mark, e a maneira como toda pessoa, mitômana ou não, adota alguma espécie de disfarce com que se apresentar aos outros.

Na interpretação irretocável de Matt Damon, o rechonchudo e bigodudo Mark, vestido em ternos de tecido excelente e alfaiataria medíocre, poderia ser só mais um produto do que se supõe ser a busca americana por produtividade e conformidade. Mas, na narração que acompanha o filme, seus pensamentos disparam em todas as direções - a obsessão dos japoneses por calcinhas de colegiais, borboletas que imitam outras, os truques dos ursos-polares para esconder seu focinho preto. Todos convergem para a ideia de dissimulação, e denotam também uma curiosidade intelectual, uma inquietação com a vida, que o personagem não sabe satisfazer. Até o objeto de sua vida profissional, o milho, é um paradigma do mimetismo, já que está em toda a dieta americana mesmo quando não parece estar. A certa altura de sua confusão com o FBI, Mark foi diagnosticado como bipolar. Esse dado, porém, não é essencial. Para O Desinformante!, ele representa só uma forma mais extrema de uma necessidade humana inescapável: a de não ser só o que se parece.


"O Oscar erra. E eu posso ter sido um desses erros"

A seguir, trechos da entrevista que o diretor Steven Soderbergh
deu a VEJA, de seu escritório em Los Angeles:

Você diz que imediatamente pensou em Matt Damon ao ler a história de Mark Whitacre no livro-reportagem O Informante. Por quê?
Whitacre é um homem muito americano: ambicioso, cheio de energia, otimista. Achei que Damon não só saberia exprimir essas características, como também dar ao personagem aquela camada subjacente que é tão importante nele e virar esse homem tipicamente americano do avesso.

Divulgação
O OLHO DO DONO
Soderbergh: ele vê os próprios filmes até enjoar, na sala de montagem, para cortar tudo o que o faça ter ideias suicidas


Você lançou cinco filmes nos últimos dois anos, um recorde. Por que trabalhar tão rápido?
Sobra muito tempo para trabalhar quando não se participa do circo social de Los Angeles. Além disso, a velocidade é um elemento disciplinador. É bom ter dinheiro e tempo para rodar um filme, mas dinheiro e tempo em excesso são um malefício. Causam autocomplacência e, no meu caso em particular, matam toda a vivacidade de um projeto. Quanto mais analiso uma ideia - algo que tendo a fazer obsessivamente -, mais a asfixio. A rapidez ajuda a coibir essa característica pessoal.

Seus filmes estão cada vez mais enxutos, sem gordura nem firulas. Como exercitar essa disciplina?
Assisto a cada filme meu trinta ou quarenta vezes na sala de montagem. Sobram as cenas que, revistas pela enésima vez, não me fazem pensar em suicídio. Acho que os filmes em geral andam longos demais. Ainda que eu não tenha moral para dizer isso, já que as duas partes de Che somam 270 minutos.

Che é uma visão no mínimo parcial da Revolução Cubana, uma vez que não mostra suas repercussões desastrosas, presentes até hoje no continente. Mas é preciso falar delas?
Elas não são conhecidas o suficiente? Parece claro que Cuba estaria muito melhor hoje sem a revolução - e parece também que o espectador em geral sabe que essa é uma ideologia que, além de ter acarretado e continuar a acarretar milhões de vítimas, recaiu sempre em todos os erros que atribuía ao capitalismo. Não sou comunista nem socialista e, como americano sem ascendência latina, não tenho motivo seja para idealizar seja para demolir Che Guevara. Compreendo que esse seja um tema que suscita muito calor na América Latina. Mas, para mim, é um personagem.

Você é o único diretor a ter recebido quatro indicações ao Oscar no mesmo ano - de filme e direção por Traffic e Erin Brockovich.
Algo assim sobe à cabeça ou, por contraste, faz sentir que nunca se chegará lá novamente?O Oscar foi criado para despertar interesse por certos filmes, o que é um propósito excelente, mas sua história é definida tanto por seus acertos quanto por seus erros e omissões. Por definição, então, não posso ter certeza de que se trata de um acerto quando sou eu o funcionário do mês, por assim dizer. É uma sensação ótima, porque os eleitores são meus pares, mas é preciso manter essa perspectiva.


Trailer


Arquivo do blog