O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um cartão corporativo, um avião quase novo para viajar pelo vasto mundo e uma versão própria do Fundo Monetário Internacional (FMI), muito mais amigável do que o original e também muito útil politicamente. A maioria de seus colegas latino-americanos deve ter motivos, portanto, para invejá-lo. O FMI para uso interno tem sede em Brasília. É o Banco Central (BC), órgão responsável pelo combate à inflação e pelo uso dos instrumentos de controle monetário, incluída a taxa básica de juros. Quando os juros sobem, empresários, políticos de várias tendências, analistas de política econômica, sindicalistas, membros do MST e grupos estudantis podem espinafrar o presidente da instituição, Henrique Meirelles, ou o Comitê de Política Monetária (Copom). Quando convém, como ocorre com freqüência, o chefe de governo pode participar desse grande coro de censura.
O presidente Lula valeu-se dessa possibilidade, na quinta-feira, durante um comício - ou melhor, cerimônia do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em Belo Horizonte. Exibindo um colar cervical prescrito por um médico, o presidente atribuiu seu torcicolo a várias causas, incluindo na lista o aumento de juros anunciado no dia anterior pelo Copom. Não foi além desse comentário, mas provocou risos e aplausos e integrou-se, com muita facilidade, no grupo dos insatisfeitos com o novo endurecimento da política monetária.
Noutros tempos, governantes brasileiros apontavam o dedo para o FMI, quando submetiam o País a políticas monetárias e fiscais severas. A culpa era do Fundo. As autoridades não tinham escolha, porque eram forçadas a recorrer ao financiamento da mais detestada instituição multilateral. Os ministros da Fazenda, então com autoridade sobre o BC, podiam estar convencidos do acerto da política de ajuste, mas não precisavam assumir a responsabilidade da escolha. Os presidentes podiam alegar a mesma inocência. Era o padrão de comportamento da maioria dos governantes, quando tinham de adotar medidas penosas de estabilização.
O caso do presidente Lula, hoje, é parecido, mas com uma adaptação importante. O Executivo simplesmente se exime de tomar as medidas fiscais necessárias ao equilíbrio macroeconômico. Deixa todo o trabalho para o BC. Este responde elevando os juros e torna-se o alvo dos protestos. O presidente da República assume a posição mais cômoda e, quando o berreiro é grande, também aponta o dedo para quem decidiu o arrocho monetário.
O BC, nesse aspecto, é bem melhor do que o Fundo, porque em geral apanha sem protestar, carrega sozinho o peso político do ajuste e acaba entregando a mercadoria prometida - ou, pelo menos, tem conseguido entregá-la até agora. O presidente Lula valoriza esse pormenor. Aprendeu a importância política e social de manter a inflação controlada e - ainda melhor - tem faturado sem custo os ganhos dessa façanha.
A situação é especialmente confortável num ano de eleições, como este. Há algumas semanas, o presidente mostrou-se preocupado com o rápido crescimento do crédito e do consumo. Seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a falar sobre a adoção de medidas para restringir a expansão do financiamento aos consumidores. Mas alguém, no Palácio do Planalto, deve ter percebido o possível custo político de uma iniciativa desse tipo. O ministro foi obrigado a desmentir-se.
O presidente, no entanto, continuou o jogo e deu a impressão, dias depois, de julgar inevitável e necessária uma nova alta dos juros. Também essa intenção foi por ele desmentida, em pouco tempo, mas o recado não se perdeu. O Executivo reconhece a intensificação de pressões inflacionárias derivadas não só do mercado internacional de commodities, mas também da demanda interna muito aquecida. Mas não julga desejável controlar o gasto público.
O trabalho ficou, mais uma vez, na total dependência do Copom. Os custos, também. O presidente, embora tenha dado a impressão de desagrado, não se estendeu na censura. Manteve o compromisso informal de respeito à autonomia operacional do BC. Também esta é a atitude mais confortável. Se interferisse na política monetária, assumiria o custo político das decisões e do possível fracasso, no caso de as medidas não darem certo. Mas pode sempre partilhar do bônus do sucesso.