Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 24, 2014

Walesa, o mito refeito homem - Daniel Aarao Reis

Walesa, o mito refeito homem - Jornal O Globo

O Globo

Quem se lembra de Lech Walesa?
Com 70 anos completados no ano passado, casado com Danuta desde 1969, oito filhos, o líder sindical e político polonês continua forte e lúcido, embora sujeito à maldade do tempo: bem mais gordo, bigodes e cabelos brancos, rugas em volta dos olhos claros. Permaneceram a autoconfiança e o orgulho, pouco afetados pelos revezes que vieram depois da consagração.
Walesa teve dias de glória nos anos 1980. Tornou-se um mito, em seu país e no mundo. Eletricista de profissão, empregado nos estaleiros de Gdansk, destacou-se como liderança a partir dos anos 1970. Desde então, a classe operária fez-se um osso duro de roer para as elites privilegiadas do socialismo realmente existente no país. Rudolph Bahro, pensador alemão, fixara a fórmula: não era o socialismo desejado no século XIX, mas o que existia de fato. Seja como for, aquelas lutas viravam pelo avesso os roteiros conhecidos: como podiam os operários lutar contra o socialismo?
O interessante era ver, das bases mesmo da sociedade, por baixo, brotar um movimento autônomo, independente do Estado, dos partidos políticos e dos sindicatos. Pouco a pouco, surgiu uma organização original, à qual os operários deram o sugestivo nome de Solidariedade. Articulava funções políticas e sindicais, aglutinando as oposições ao regime: trabalhadores, intelectuais e até os dissidentes do Partido Comunista dominante. Era uma luta pela sobrevivência, falando às gentes de como se tornara insuportável viver no limite do suportável. Ao mesmo tempo, acionava os valores da liberdade, da democracia e as tradições nacionalistas e religiosas, específicas do processo histórico polonês.
Era preciso muita solidariedade para enfrentar a polícia, as forças armadas, a burocracia do Estado e o partido comunista. E as ameaças dos tanques soviéticos que esmagaram tentativas semelhantes em Berlim (1953), na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968). Não era evidente que os tanques voltariam para destruir as lutas que se travavam na Polônia? Os próprios poloneses tinham feito a experiência, desde os anos 1950 e 1960, de movimentos de questionamento à ordem comunista cedo vencidos pela astuciosa combinação de ameaças, repressão e concessões parciais. Não à toa destilava-se a resignação, nutrindo a inércia e o desânimo.
Assim, o Solidariedade parecia destinado a mais um fracasso. O que desejava era simplesmente impossível.
Entretanto, os operários venceram. Foi uma longa jornada, entremeada de esperanças e desilusões, de ameaças e prisões, passando pela decretação de uma ditadura militar, no fim do ano de 1981. Tudo pareceu, então, perdido, com a prisão de Walesa, das lideranças do Solidariedade e o desterro desta para a ilegalidade. Chegara o fim, previsto pelos especialistas no assunto.
Nas sombras da clandestinidade, porém, manteve-se o movimento, organizando, pressionando. Um pouco mais tarde, no contexto da perestroika soviética, reapareceu às claras, atuante, forçando as autoridades a readmiti-lo como interlocutor. Em 1989, quando desmoronava o muro de Berlim, o Solidariedade venceu eleições nacionais. No ano seguinte, tornou-se o principal protagonista do desaparecimento do socialismo ditatorial na Polônia, consagrando Walesa como presidente da nova república democrática.
Mas a história ainda tinha enredo.
Governar naquelas condições não seria fácil. Walesa fez o aprendizado dos rebeldes que chegam ao poder: é mais difícil exercê-lo do que lutar por ele. O líder desgastou-se. Perdeu a reeleição no ano seguinte. Numa nova tentativa, teve apenas 1% dos votos. E ainda amargou a revelação constrangedora de que fora informante ocasional da polícia política na primeira metade dos anos 1970.
Andrzej Wajda, cineasta polonês, fez três filmes sobre a saga da luta dos operários poloneses e de seu líder, Lech Walesa. Em "O homem de mármore", de 1977; e "O homem de ferro", de 1981, narrou as lutas dos operários e os enfrentamentos com a polícia e o Estado. Num tom épico, a celebração dos oprimidos e a crítica radical da ditadura. Agora, já no ocaso da vida, aos 88 anos, Wajda oferece um documentário biográfico de Walesa: "O homem da esperança."
Não faltam momentos de emoção. O das gentes compactas, contritas, atentas, ouvindo nos pátios dos estaleiros, pelos alto-falantes, as duras negociações entre as lideranças e as autoridades. Ou o de Danuta, a grande mulher de Walesa, recebendo, em seu nome, o Prêmio Nobel, em 1983.
Mas falta ali alguma coisa. Terá sido a mão do diretor, enfraquecida pelo tempo? Ou é a esperança, que já não é tão viva? O fato é que, nas reviravoltas da história, o mito Walesa aparece refeito como ser humano, marcado, em sua grandeza, por defeitos e contradições. Que assim seja: a democracia não precisa mesmo de mitos. Quanto menos encantada, melhor.
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da UFF
daniel.aaraoreis@gmail.com


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