15 Junho 2014 | 02h 07
Embora microscópica e por vezes até clandestina, sempre houve uma torcida brasileira contra o Brasil, em todas as Copas. Os componentes dessa falange têm, sob outros aspectos, pouco em comum entre si. Uns são do contra pela própria natureza, nasceram assim. Outros são apostadores frios e desalmados, que botariam uma graninha contra a própria mãe, se as probabilidades fossem boas, quanto mais contra o Brasil, cuja gentileza maternal está no Hino, mas todo mundo sabe que não é bem assim. Outros discordam do técnico e da escalação e preferem perder a Copa a perder a discussão. Outros são supremacistas, acreditando na superioridade congênita de alemães, ingleses, holandeses ou escandinavos. E, na minha remota juventude, os comunistas apátridas eram rotineiramente acusados de preterir o Brasil, em favor de qualquer país da Cortina de Ferro.
Nada cataclísmico, mas, na Copa de 70, houve, como lembrarão os menos mocinhos, um movimento amplo e sério pela torcida contra, porque a vitória era vista como um triunfo para o regime militar. Não se falava muito sobre o assunto, que na época podia render uma cana bastante dura, mas havia mecanismos para contornar a situação. Uma festinha em casa, talvez significativamente, era comumente chamada de "reunião", mesmo que não passasse de um jantar de aniversário. A certa altura da reunião, a eclosão do debate se tornava inevitável. Oradores inflamados e seus aparteantes mostravam como, se o Brasil ganhasse a Copa, o povo legitimaria de vez o regime e nunca mais sairíamos dele. O verdadeiro patriotismo consistia, portanto, em ignorar a Copa e, com mais coragem ainda, torcer contra o Brasil.
Era talvez a atitude mais chique. Se o politicamente correto já existisse então, sem dúvida teria nela uma postura exemplar. Em alguns militantes da causa, notava-se o ar estoico de quem ia para uma missão suicida num filme de guerra, como quem diz que não é nada, mas tem consciência do grande sacrifício que está fazendo. Para a vasta maioria atoleimada pelo futebol, reservavam-se sorrisos complacentes e comentários resignados, do tipo "eles não sabem o que fazem, são todos uns alienados, anestesiados pela bola". Mas isso, como se sabe, só durou até o apito inicial do nosso primeiro jogo, contra a então Checoslováquia.
Começou com o Hino, cujos primeiros acordes provocavam os habituais nós na garganta, olhos úmidos e corações inquietos, mesmo em alguns dos mais decididos militantes. E aí a Checoslováquia fez o primeiro gol e um manto de silêncio se estendeu sob os céus da nação. Uns poucos radicais se atreveram a comemorar meio sem graça, outros disfarçaram em dissertações políticas, nenhum dos antes exaltados soltou os foguetes e rojões que havia planejado para os revezes brasileiros e as poucas, chochas e falsificadas manifestações de contentamento se reduziram a apertos de mão circunspectos, quase funéreos. Mas logo em seguida o Brasil empatou e enfiou quatro nos checos, com a consequência de que o movimento desapareceu imediatamente e afundamos em gritos, urros, pulos, punhos fechados, bravatas e exaltações variadas. No dia posterior, seria vaiado ou banido do ambiente quem quer que se manifestasse contra o Brasil, explicações políticas ou não. E, antes do jogo contra o Uruguai, já perto do fim da Copa, havia quem não dormisse com medo de nova derrota e sugerisse até uma invasão preventiva, para evitar nova surpresa desagradável.
Também não adianta torcer por outra seleção, como tentam alguns, por mais que a escolha seja bem motivada e bem explicada. Sei disso na pele, porque, em 1990, eu morava em Berlim e a Copa foi pertinho, na Itália. Numa noite melancólica e lúgubre, assisti ao Brasil de Lazaroni ser despachado pela Argentina, logo nas oitavas de final. Achei, como me acontece desde menino, que ia deixar de me chatear por causa de futebol e não ia mais torcer por time ou seleção nenhuma. Mas claro que, como também me acontece desde menino, no dia seguinte eu estava diante da televisão novamente, para ver os outros jogos, embora sem torcer.
Mas é chato assistir a uma final de Copa sem torcer e concluí que torcer pela Alemanha, na final contra a Argentina, podia ser até uma bela e recompensadora experiência, a começar pela vingança da derrota nas oitavas. Além disso, sempre me dei muito bem na Alemanha, onde até já escrevi regularmente para jornais e tenho muitos amigos. Sim, torceria fervorosamente pela Alemanha e, sorrindo os fados, comemoraria com festa a sua conquista. E comemorei com tanto empenho quanto pude, brindei com espumantes, abracei os amigos alemães que estavam lá em casa, comentei lances do jogo. Mas só eu sei como aquilo foi forçado, não por causa dos alemães, mas por causa do Brasil mesmo. Mais tarde, enquanto Berlim fazia a festa dos vencedores, me chamaram para sair também, eu não fui, acho que entraria em depressão invejosa. Torcer por outra seleção nunca será a mesma coisa.
E, por mais que a contratorcida tente justificar-se, acho que as Copas, inclusive esta, mostram que ela nunca vingará. A Copa não é de governo nenhum, nunca será, nem governo nenhum vai ter a desfaçatez de tomar para si um feito que, em última análise, é do povo brasileiro e ninguém mais pode apropriar-se dele. Queremos esta Copa, assim como havemos querido e quereremos todas as outras. E, ainda na condição de torcedor, ouso enfatizar que, se ganharmos a Copa, não terá sido o governo, teremos sido nós, como aconteceu todas as vezes em que ganhamos. E - bato na madeira - se perdermos, terá sido o governo, nem que seja por pé-frio.