O Globo
No filme de David Lean "A ponte do Rio Kway" (realizado em 1957), planeja-se uma missão de sabotagem tão perigosa quanto ganhar uma Copa do Mundo: dinamitar em pleno território ocupado pelos japoneses, então inimigos, uma ponte estratégica. Um pequeno grupo, comandado pelo Felipão, digo, pelo Major Warden (vivido pelo ator inglês Jack Hawkins), sai a campo, digo, a selva birmanesa para dinamitar a ponte. Ponte que separa (e une) guerra e paz, sanidade e loucura, fracasso e derrota.Diante de um trabalho tão arriscado, o experiente Major faz a sábia advertência que intitula essa crônica: há sempre o inesperado. O não programado, o hóspede não convidado, o gol contra, a falha na hora do pênalti, o erro do juiz, o esquecimento revelador, a emoção que embarga a voz, o tremor na hora da assinatura, o flagrante que desnuda a cadeia de corrupção, a carta inesperada, a incompetência de algum membro do aparelho partidário que, burro e confiante, diz o que não pode ou deve.
Como somos seres não programados, inventamos leis, mandamentos, códigos, rotinas e rituais. Alguns são tolos como engraxar sapatos, dar beijinho na testa ou pentear o cabelo. Outros são fundamentais como honrar o cargo público, enjaular bandidos, contar com uma polícia honesta, não corromper empresas públicas e, por último, mas não menos básico, prover diversão em locais públicos.
Nisso se enquadra o torneio esportivo — e, para nós, brasileiros, as Copas do Mundo, como notam alguns jornalistas americanos, ignorantes que as conquistamos cinco vezes —, que é uma modalidade tão mobilizadora que chamam de "religião". A um estranho culto porque — não tendo que lutar com o pessimismo que carregamos no cangote, graças ao nosso eugenismo racista que foi logo substituído pelo determinismo marxista aliado ao positivismo de Comte — a visão do esporte para os americanos é uma atividade do universo do ócio. Um ócio que, ao contrário do que diz uma contrafação metida a intelectual fabricado em pizzaria, só pode ser criativo. Como poderia ser outra coisa se até coçar o saco é uma arte, como sabem de sobra os nossos políticos em geral e os nossos dirigentes em particular?
Ora, o culto do futebol no Brasil tem lógica e razão. Ele une uma atividade originária de um país imperialista, racista, visto como modelar e rico (a velha Inglaterra) a uma nação paternalista, aristocrática até a medula, na qual administração pública e sistema cultural (gostos populares, comidas, músicas, crenças etc...) sempre jogaram muito mais um contra o outro do que um com o outro. O futebol junta pela emoção Estado e sociedade. Não é um inesperado trivial.
Em 1950, com 13 anos, fui com meus irmãos assistir à vitória do Brasil contra a então Iugoslávia. Fomos e voltamos de bonde e barca. Não havia demonstrações e o Brasil se orgulhava do seu maior estádio do mundo.
Ontem, vi num telão em Miami (onde fui tragado, pelo meu trabalho pioneiro de estudioso do futebol) o jogo Brasil e Croácia (que foi — eis um outro inesperado — um pedaço da Iugoslávia) com a mesma emoção religiosa porque foi o futebol que inventou um Brasil que deu certo. Esse "dar certo" que é lugar-comum nestes Estados Unidos, exceto pela crise financeira, o revivalismo de extrema-direita e pelo problema do Iraque que, ao que tudo indica, coloca por terra uma custosa e provavelmente inútil invasão, ampliando o terrorismo antiamericano.
Esses são inesperados, tais como o do jogo inaugural com um gol contra de um excelente jogador brasileiro, um pênalti cavado com arte e uma presidente inventada por Lula e eleita pelo maior partido popular e populista do Brasil que, contrariando a expectativa populista, foi civicamente vaiada. Sinal de um claro divórcio entre governo e sociedade. Entre um Estado com as suas usuais caras de pau e seu histórico de corrupção e aparelhamento colado numa argentária Fifa. E de uma sociedade ligada no futebol que ama e pratica com excelência mundial, com sua transparência, sua vontade de vencer e o seu talento à prova de compadrios e aparelhamentos partidários.
O inesperado foi a vaia de um lado e, do outro, a virada para a vitória depois de um imprevisto e deprimente gol contra. Deste modo, tanto no campo, quanto na vida, o futebol prova-se mais veraz do que a trivial realidade.
Os materialistas dizem que a arte é um prolongamento da vida. Eu digo o contrário: o que inventa a vida é a arte. Do mesmo modo que o futebol reinventa o Brasil e haverá de reinventá-lo nesta Copa jogando também contra as pilantragens da Fifa, da CBF, da corrupção federal e do populismo lulopetista que já não dribla e começa a levar gols.
Há sempre o inesperado.
Roberto DaMatta é antropólogo
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