Enviado por Míriam Leitão e Alvaro Gribel -
22.06.2014
Coluna no GLOBO
Futebol provoca paixão, amor, raiva, desatino. Outros esportes têm torcida, mas o futebol é avassalador. É nosso e é mundial. O sociólogo Mauricio Murad lembra que a Fifa tem 209 países, mais do que a ONU, e a Copa está sendo transmitida para 214 países. O psicanalista Joel Birman acha que o Brasil contribuiu colocando o debate sobre os erros da Fifa na agenda mundial.
"A Fifa é um poder tirânico, soberano, um Estado dentro dos Estados e tem uma liderança que não se renova. Os ingleses nos aplaudiram por termos a coragem de fazer o que fizemos: criticar a Fifa. O jornal inglês 'The Guardian' nos elogiou por estarmos discutindo isso", diz Birman.
A Copa de 2014 está particularmente intensa. Tem tido jogos lindos, resultados inesperados, manifestações de raiva nas ruas contra erros do governo, denúncias, loucura de torcedores, hino cantado à capela. O futebol sempre provocou paixão, mas o curioso é que nesta copa, principalmente para os brasileiros, há sentimentos opostos, misturados, de igual intensidade.
Na mistura que o Brasil tem feito, de amor e raiva, de paixão pela camisa e de protestos de rua, de cobrança às autoridades e à Fifa, há muito mais do que parece na opinião do psicanalista Birman e do sociólogo Murad.
Entrevistei os dois na Globonews para entender a copa. Em outras, o verde e amarelo dominavam janelas e ruas e a trégua se estabelecia em relação aos problemas e queixas que por acaso tivéssemos. Nesta, o amor pela camisa permanece dominante, mas isso não encobre as queixas que a torcida tem contra o que está errado. Maurício Murad criou o núcleo de sociologia do futebol na Uerj e hoje tem mantido pesquisas sobre o tema na universidade Universo. Acha que o brasileiro conseguiu com sabedoria separar o que tem de estar separado mesmo:
— Há duas copas. Uma bonita, jogada nos estádios, e outra que está fora e que tem a marca da decepção com o que foi prometido e não aconteceu. Foi prometido em outubro de 2007 melhorar a mobilidade urbana, mas ela piorou com obras não feitas e incentivos ao carro. A torcida tem empurrado a seleção e separado isso da decepção com os problemas públicos. Conseguiu com a paixão isolar o vandalismo porque enfraquece as manifestações. A torcida expôs as mazelas ao criticar a Fifa e a cartolagem. Quando canta o hino dá um sinal de liberdade, alegria, irreverência. O futebol, com sua grandeza, está sendo instrumento de revelação, denúncia, oposição.
Joel Birman acha que há uma simbologia forte na decisão dos torcedores de continuarem cantando o hino após a versão resumida que a Fifa impôs. Os brasileiros inventaram isso e outras torcidas imitaram:
— O futebol é uma representação da Nação, para nós, é a pátria de chuteiras, como disse Nelson Rodrigues. Por isso, cantar o hino tem forte significado. Lamento apenas a homogeneização e o fim do futebol arte.
Os protestos de agora são diferentes dos que sacudiram a Copa das Confederações, que, por serem numerosos e inesperados, colocaram um divisor de águas. Depois, a violência acabou assustando as famílias e hoje eles são mais localizados e de categorias organizadas em torno de suas reivindicações. O que permanece é que o torcedor não abdica de suas insatisfações quando veste a camisa e vai viver sua paixão atávica pela seleção brasileira. Essa separação é maturidade.
Murad disse que, numa pesquisa que fez na Uerj e repetiu agora, o futebol é mais representativo do país do que o carnaval:
— Em muitas cidades do interior só se conhece o carnaval pela televisão, mas há sempre um campinho e em torno dele a cidade se reúne até para discutir outras questões. Engana-se quem pensa que o futebol é apenas um jogo nas quatro linhas. É uma grande representação de culturas. E viva o futebol que ajudou a expor, desta vez, as mazelas do Brasil e fez a Copa das Confederações virar a Copa das manifestações.
Tradição e novidade se misturam nesta copa. O novo é a insatisfação. A tradição é o amor ao futebol. E é assim, sobretudo, porque é um esporte bonito e imprevisível; coletivo e individual. E há aquela parte que não se explica porque paixão a gente vive. E só, sem explicações.
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