O GLOBO - 13/10
A Europa é sedutora por ser assim: tão intensa que confunde. A escolha da União Europeia provocou estranheza e aplausos. Alguns acham que é o momento errado para a premiação, porque a crise econômica acendeu rancores e ameaças. Outros pensam que a crise é hora de lembrar o magnífico no projeto de união, como um seguro contra as guerras que a dilaceraram.
Estou no segundo grupo. Acho magnífico um continente, que foi o centro de duas guerras mundiais, em que os dois maiores países se odiavam e onde a guerra fria manteve o ambiente bélico, escolher uma união tão radical.
A União Europeia é uma experiência política única. Todos os países tiveram que abrir mão de parte da soberania nacional, transferir decisões locais para entidades supranacionais, construir consensos a cada etapa para que o projeto comum desse certo.
Hoje, a crise tem realçado o que faltou fazer. Já se tornou mantra afirmar que não foram criadas bases fiscais rígidas aos países que decidiram viver a aventura de ter a mesma moeda. Essa pode ter sido uma das razões da propagação da crise, mas não é a explicação suficiente. Se fosse, a Inglaterra que tem sua própria moeda teria ficado imune à crise.
A desordem atual nasceu de erros de regulação financeira e de excessos de gastos dos países de dentro e de fora do bloco do euro, e até mesmo dos que nem mesmo estão na Europa.
Para não dar valor ao presente da Europa, é preciso desconhecer seu passado. O historiador inglês Tony Judt, no livro Pós Guerra, uma história da Europa desde 1945, lembra que depois da sangrenta primeira guerra - em que metade dos homens de 18 a 55 anos da Sérvia morreu, entre outras tragédias - a Europa permaneceu em estado bélico.
“Depois de 1918 não foi restaurada a estabilidade internacional, não foi resgatado o equilíbrio entre as potências: houve apenas um interlúdio decorrente da exaustão. A violência da guerra não se abateu. Em vez disse transformou-se em questões domésticas — em polêmicas nacionalistas, preconceito racial, luta de classes e guerra civil. A Europa nos anos 20 e, especialmente, nos anos 30, entrou numa zona de crepúsculo, entre a pós-vida de uma guerra e a perturbadora expectativa de outra”.
Essa incrível definição de Judt é seguida por outra, em que ele lembra que o pós guerra se ampliou para os anos e décadas que se seguiram à assinatura da paz, com a guerra fria e outros conflitos. “Depois de 1945 todo o continente viveu durante muitos anos sob o efeito sombrio de ditadores e guerras que pertenciam ao passado recente europeu”. Viveu-se um longo pós guerra que se encerrou com a queda do Muro de Berlim.
Nessa longa paz armada, e sobre todas as cicatrizes de duas guerras, construiu-se o projeto da União Europeia. No princípio era o Acordo do Carvão e do Aço, nos anos 50, assinado por cinco países e meio: a Alemanha estava dividida. Hoje tem 27 países e 503 milhões de habitantes convivendo com sua diversidade num território que é a metade do Brasil. O que era um acordo comercial parcial, virou a mais ampla e profunda experiência econômica e política supranacional. A UE uniu países que se fragmentaram na balcanização que houve após a implosão do mundo comunista.
Sim, a União Europeia está em crise econômica com estados endividados, alto desemprego, impasses políticos e ressentimentos entre os países membros, mas continua sendo a vitória da união e da interdependência sobre os fantasmas da guerra. Cada vez que França e Alemanha se reúnem, mesmo para discordar, é preciso lembrar o ódio que os dois países superaram.
Entrevista:O Estado inteligente
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