O GLOBO - 11/10
Ele é negro. Acima de qualquer dúvida razoável, como dizem os juízes. Ele é negro e não contemporiza para facilitar sua aceitação. Joaquim Benedito Barbosa foi eleito ontem presidente do Supremo Tribunal Federal. Elogiou-se a rotina de eleição pelos pares e a alternância no cargo. Ainda melhor será o momento em que o fato de um negro estar lá nem notícia será, de tão rotineiro.
É assim que o país avança: quebrando paradigmas. O ministro Joaquim vai errar e acertar nos próximos dois anos, como nos últimos nove. Seus antecessores também erraram e acertaram. Não é herói — ele até se define como anti-herói — mas virou símbolo de um avanço extraordinariamente importante para o Brasil. O espaço maior que vem sendo ocupado pelos negros em instâncias do poder, até hoje majoritariamente brancas, é uma vitória que pertence ao país como um todo. Multiétnico e miscigenado, o Brasil ainda assim criou distâncias sociais e as manteve com a mais eficiente das estratégias: negar a existência da discriminação.
Joaquim votou no PT nas últimas três eleições, como revelou à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e hoje é relator do processo que está condenando lideranças emblemáticas do partido. Foi capaz de separar de forma cirúrgica sua convicção técnica de juiz de quaisquer outras considerações que poderiam interferir em sua decisão.
O ministro tem uma história de vida de superação. Foi pobre, construiu sua ascensão pela educação, se globalizou indo para algumas das melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. Tem currículo invejável e competência inequívoca.
Debruçou-se, entre outros temas, sobre uma política pública que no Brasil ainda produz muita controvérsia: a ação afirmativa. Poderia fugir do assunto por temer ser instalado num gueto teórico. Poderia negar, com sua história de vida de superação, que este seja o melhor caminho para a construção de um país com uma elite também multiétnica. Mas estudou ação afirmativa, escreveu um livro técnico defendendo a política e não ficou preso ao tema. Quando a ação das cotas chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu livro foi citado, por exemplo, no voto do ministro decano Celso de Mello. Ao fim, as cotas foram aprovadas por unanimidade, porque o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski foi seguido por todos.
Não há uma contradição entre o caminho que o levou ao topo e as ações afirmativas que tornarão o Brasil, no futuro, um país em que outros vençam as barreiras que ele venceu. O currículo dele foi construído com muito esforço, mas nenhum presidente antes do Lula viu méritos em outros juízes negros. A invisibilidade do discriminado é uma arma antiga para manter as distâncias sociais. Se o ex-presidente Lula tivesse ficado prisioneiro da mesma armadilha de ver os méritos apenas do grupo dominante, o Supremo, talvez, fosse ainda hoje um monopólio dos brancos. Joaquim, como lembrou Celso de Mello, é o 50º presidente da Corte desde o Império, o 44º da República. E será o primeiro negro a se sentar na cadeira de presidente.
Muitos dizem que o importante não é que ele é negro é que tem méritos. Sem dúvida. Mas por que houve uma tão longa fila de meritórios apenas brancos? Porque não houve igualdade de oportunidades.
Há dez anos um blog do jornal Washington Post pediu a jornalistas de vários países que escrevessem quais eram as forças emergentes em cada país que teriam mais poder em 20 anos. Escrevi que no Brasil essas forças emergentes eram as mulheres e os negros. Hoje, o Brasil é presidido por uma mulher e, em breve, o Judiciário, por um negro. O Brasil muda para melhor.