O Estado de S.Paulo - 07/08/11
Cui bono? Em benefício de quem? Essa era a pergunta que os antigos romanos costumavam fazer quando se deparavam com situações enrascadas ou decisões polêmicas dos seus cônsules e membros do Senado. Se a política no mundo contemporâneo se torna um exercício de fuga da verdade, a velha indagação romana reveste-se de grande atualidade. Quem se beneficia com os dribles à realidade?
Há quatro séculos Francis Bacon, o filósofo inglês, já apontava que os políticos são bons ilusionistas. Alguns tentam impedir que as pessoas os tomem como efetivamente se apresentam, outros multiplicam argumentos para provar que não são o que deles se pensa ou fingem ser o que não são. No palco da política, a simulação e a dissimulação tornam-se ferramentas indispensáveis para a grandeza do espetáculo e o aplauso das plateias. Por isso os atores se esmeram em artifícios para melhorar o desempenho no teatro político. Mas os artifícios, como arabescos carnavalescos, mudam de cor e de cenário, ao sabor de momentos e circunstâncias.
Veja-se, por exemplo, o artifício das prévias, que o Partido dos Trabalhadores (PT) incluiu em seu estatuto por enxergar nele alta taxa democrática. Prévias propiciam às bases escolher candidatos aos pleitos, ajustando posições, integrando vontades, respeitando maiorias, enfim, fornecendo oxigênio aos pulmões partidários. Se assim é, por que as prévias passaram, agora, a ser malvistas? Porque, respondem alguns, o PT precisa ter "maturidade política". O que vem a significar isso? Ou, em termos romanos, cui bono? A quem o enterro das prévias petistas beneficia?
A resposta é complexa. Embute a história de uma agremiação que não é aquela que diz ser e finge ser o que não é. O fim das prévias, decisão a ser tomada no 4.º Congresso do PT, em setembro, coroará o fechamento da era ideológica do partido. O argumento de que consulta prévia abre rachaduras na base reforça a tese de que a sigla, como todas as outras, adentra o espaço da competitividade política sob o império de uma nova ordem. Hoje a meta petista é aprofundar os pilares do partido no centro e nas margens do poder. Para tanto os fins justificam qualquer mudança na metodologia de conquista. Nesse caso, a verticalização de comando faz-se necessária para afastar dissidentes, grupos insatisfeitos e quadros que insistem em reviver a utopia socialista.
É oportuno lembrar que o PT é um partido de facções. Há, porém, um grupo majoritário que dá as cartas, define estratégias, estabelece rotinas e impõe o mando. Pois bem, essa nova disposição arquiva no baú da História a velha sigla formada, há três décadas, pela comunhão de interesses de sindicatos, ala progressista da Igreja Católica, intelectuais e quadros que militaram nas frentes contra a ditadura. Desse PT original só restam resquícios. Hoje os sindicatos são as pernas de centrais absorvidas pelo establishment. Já os parceiros religiosos se dispersaram. Ou perderam a crença. Militantes, por sua vez, esvaziaram os pulmões revolucionários, migraram para outras siglas, enquanto alguns foram indenizados e outros passaram a integrar as "milícias" do Estado como burocratas.
O velho PT é um retrato na parede.
A alteração da fisionomia, vale lembrar, começou antes da ascensão da sigla ao pódio central do poder, em 2002, com a primeira eleição de Lula. O pano de fundo descortina o cenário da despolitização e desideologização, com os traços marcantes da queda do Muro de Berlim, cujos efeitos se fazem notar em fenômenos como o arrefecimento da densidade ideológica da competição política, o abandono de intransigências doutrinárias e o refluxo do antagonismo de classes. Por estas plagas, as cores doutrinárias também se tornaram menos contrastantes, mais leves, por causa da expansão econômica, que aproximou identidades e provocou mudança de paradigmas. Os partidos substituíram o escopo ideológico por eficácia eleitoral, significando isso pragmatismo e prioridade à micropolítica (demandas setoriais de comunidades e localidades). Nossa democracia representativa ganhou o reforço da democracia supletiva, sendo esta fruto da pressão de grupos organizados e entidades intermediárias, polos de demandas grupais e comunitárias. A nova topografia política espalhou-se pelo território, siglas tradicionais perderam força e outras, menores, começaram a se mexer no palco. Com o ingresso de mais participantes o espectro político tornou-se multifacetado.
Sob essa arrumação e acomodação ideológica, faltava apenas o pulo do gato para o PT se conformar ao modus faciendi da política tupiniquim. O pulo do gato era o ingresso no paraíso, meta só alcançável se Luiz Inácio, ex-metalúrgico treinado na arte de conquistar as massas, realizasse a façanha de tomar assento principal naquele palácio cujas colunas seu criador, Oscar Niemeyer, dizia serem "leves como penas pousando no chão". Depois de três tentativas, lá ele se plantou por oito anos, tempo que aproveitou para fazer uma administração de sucesso, ganhar prestígio nacional e internacional e, sob o prisma partidário, prolongar o ciclo do PT no comando do País.
O xis da questão está decodificado. Qualquer disposição - norma, instrumento, meio, recurso - necessária para extensão do projeto de poder do PT deve ser aceita e internalizada por seus membros. Prévias, em determinada fase da vida petista, significavam algo bem diferente do que representam nestes tempos de conquista do "poder pelo poder". Hoje abrem fissuras, provocam disputas, geram dissensões. A meta de perpetuação no poder requer ordem unida. Que carece de concórdia nas bases.
Essa é a indeclinável nova maneira de ser do PT. Assentada com a argamassa do pragmatismo. Ancorada no acolhimento de todas as facções no seio da administração. Firmada com parceiros temporários. E com a visão grudada nas colunas do Palácio do Planalto.
Cui bono? Agora se sabe.
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