O Estado de S.Paulo - 23/08/11
Para combater a corrupção, nada melhor do que a sociedade transparente. Nisso ajuda a internet. Vejam o e-mail que recebi denunciando a prática da propina dentro do Incra. Guardo, obviamente, o sigilo da fonte.
"Foi enviado o Memorial Descritivo Georreferenciado solicitando o novo registro de área por intermédio de um escritório de engenharia e topografia. De cara ele nos alertou que, ao protocolar o processo no Incra, existem dois caminhos a percorrer. Primeiro, o da burocracia. Este vai levar em torno de 2 anos e meio, ou mais, para ser percorrido, às vezes eles até perdem a documentação lá dentro. Segundo, o do jeitinho. Este outro passa pelo nosso amigo lá, no máximo com uma semana ele devolve assinado, não falha, mas tem que depositar tudo certinho pra ele, e à vista, antes de receber o documento".
Continua: "Pois bem, optamos pelo o caminho rápido: depósito em dinheiro de R$ 3.000,00 (três mil reais) na conta do escritório, que em seguida faria o mesmo depósito em dinheiro para o contato dentro do Incra. Em uma semana recebemos o Sedex com o documento assinado, certificado, auditado e aprovado. Seguem os dados do carimbo do documento".
Incrédulo com a leitura da mensagem que recebera, terminei por verificar, ao final dela, a cópia da ordem de serviço, devidamente numerada, emitida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/Superintendência Regional de São Paulo/Comitê Regional de Certificação. O jeitinho, realmente, havia funcionado.
O caso, ocorrido na região de São João da Boa Vista (SP), infelizmente, parece não ser único. Por todo lugar se escuta que o Incra tem demorado exageradamente no andamento desses processos de regularização fundiária. Os agricultores confessam ter medo de perseguição se delatarem a malandragem. Preferem se calar.
Mas a faxina contra a corrupção que a presidente Dilma Rousseff está sendo obrigada a realizar no alto escalão da República abre portas para a honradez vencer o medo. Denúncias começam a pipocar, indicando uma podridão que precisa ser desmantelada.
Georreferenciamento parece palavrão. Mas se trata de um artifício técnico fundamental para aprimorar o cadastro rural do Incra, acabando com o histórico mal da grilagem de terras. Sua obrigatoriedade chegou com a Lei n.º 10.267/2001, trazendo maior transparência aos registros cartoriais. Herança bendita de Fernando Henrique Cardoso.
Em qualquer transação, os imóveis rurais, a começar das áreas maiores, foram compelidos a confirmar seu perímetro utilizando-se de métodos precisos, e uniformes, de mensuração topográfica. O memorial descritivo das propriedades rurais passou obrigatoriamente a estar conectado ao Sistema Geodésico Brasileiro. Uma pequena revolução na cartografia agrária.
Tradicionalmente, desde a época das sesmarias, os registros de terras definiam-se em função de discutíveis, e curiosos, marcos. Cordas e trenas traçavam das fazendas e dos sítios os polígonos, delimitados por um acidente geográfico, uma frondosa árvore, um mourão velho. Agrimensura rudimentar.
Sucessores do astrolábio, os teodolitos somente passaram a melhor precisar a medição geométrica a partir de 1920. Progressivamente aperfeiçoados, os modernos aparelhos ganharam leitura eletrônica há 40 anos. Novo passo da topografia mais recentemente se obteve com a utilização de satélites. Hoje os mapas descritivos das propriedades rurais em nada se parecem com os alegóricos rascunhos de antanho.
O olhômetro era uma moleza para os grileiros de terras, que se apossavam de áreas fincando limites ilusórios, escondidos nas matas. Terrível problema agrário do País, a grilagem começou efetivamente a ser combatida a partir de 1995, quando o Incra iniciou uma varredura dos imóveis rurais com área superior a 10 mil hectares. Operação pente-fino.
Sucessivas diligências e instrumentos legais, incluindo uma CPI no Congresso Nacional, resultaram, em 2000, no cancelamento de 48 milhões de hectares e na interdição de outros 44 milhões, do cadastro de terras do Incra. Para comparação, a safra de grãos do País cultiva-se em 47 milhões de hectares.
Excluindo esses latifúndios fantasmas, o índice de Gini, um indicador utilizado para medir o grau de concentração da estrutura agrária, caiu de 0,847 para 0,802. Incrível. A simples limpeza do cadastro rural derrubou o velho chavão de que o Brasil era o campeão mundial de concentração fundiária. Liderava, isso sim, a grilagem de terras.
Agora, não apenas mais facilmente se descobrem as fraudes, como se evita o problema futuro no mercado de terras. Para a nova legislação funcionar, todavia, carece do carimbo oficial do Incra. Aí é que a coisa, segundo dizem, anda empacando.
Eu sugiro que a presidente Dilma mande realizar uma faxina agrária no Incra. E não apenas para investigar essa delonga nos processos de georreferenciamento dos imóveis rurais. Poderia aproveitar a onda moralizadora e seguir mais além, promovendo uma ação saneadora nos assentamentos rurais e acabando com a maracutaia, sabida há tempos, da venda irregular de lotes da reforma agrária.
Daria para levantar, também, os dados sobre a compra superfaturada de terras, prática adorada por conluiados fazendeiros picaretas. Fora a investigação, pra valer, dos convênios suspeitos - apontados pelo Tribunal de Conta da União e pelo Congresso Nacional -, que repassam recursos públicos às organizações de sem-terra.
O Incra ganhou respeito pela sua história, ligada à causa da democratização da terra. Não pode ser posto em suspeição, nem aparelhada pela política vil. Devolver-lhe a decência faria bem enorme ao Brasil vislumbrado neste recente namoro da moralidade com a República.
Entrevista:O Estado inteligente
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