O Estado de S.Paulo - 31/07/10
É justo proteger comunidades indígenas primitivas e isoladas, assegurando-lhes condições de vida pautadas por suas culturas ancestrais - comunidades que, sem atropelo, serão gradual e naturalmente assimiladas, como sempre aconteceu quando culturas de níveis distintos se põem em contato. Entretanto, em se tratando de índios aculturados - cocar e pintura para a TV... -, que se valem do apoio social público, embora mal atendidos, como grande parte do povo brasileiro, inseridos na moldura da civilização, usufruindo suas vantagens, sofrendo suas atribulações e até cometendo seus delitos (a exemplo da venda clandestina de madeira), é, no mínimo, discutível a prática de nossa penitência pela História, cuja lógica, se estendida ao mundo, subverteria radicalmente a ordem global construída ao longo de séculos.
A solução para esses índios não é a demarcação de áreas imensas, de que já não precisam. É a correta integração cidadã do índio ser humano brasileiro, em áreas adequadas à socioeconomia de cada comunidade, asseguradas as condições (inclusive espaço, se for o caso) para a prática da cultura ancestral espontaneamente mantida - portanto, não orquestrada para a TV. Os critérios demarcatórios hoje usados fariam sentido se o número de índios, o nomadismo e a vida de radical dependência da natureza ainda fossem os anteriores à inserção na civilização. Nas circunstâncias atuais eles precisam mais de políticas social e econômica eficazes e menos de política fundiária antropoideológica. Os índios beneficiários da polêmica demarcação Raposa-Serra do Sol (Roraima) usam seu imenso território ao estilo primitivo de seus ancestrais? Ou vivem atrelados à socioeconomia regional, ao apoio social e até ao financiamento público? Nesta última hipótese, há sentido na extensão definida por parâmetros não mais existentes?
As reivindicações desproporcionais às necessidades não exigidas pela vida selvagem e nômade, de populações indígenas maiores do que as atuais, são autenticamente indígenas? Os defensores das reservas-vastidões arriscariam perguntar a preferência dos índios, entre a vida do passado, dispersos e isolados em grandes extensões, e a integração na civilização, é claro que econômica e socialmente apoiada? Sobre essa dicotomia, uma observação animadora: os soldados do Exército na Amazônia são em grande número de etnias indígenas, familiarizados com as peculiaridades da região, dedicados e eficientes. Resposta de comandante de batalhão do interior da Amazônia, perguntado sobre os problemas indígenas locais: "Isso é coisa de São Paulo e Brasília, aqui índio quer é ver TV no quartel e ser cuidado pelo meu serviço médico..."
A natureza básica dessas observações se aplica, em menor dimensão, à questão quilombola, também ela com sabor de penitência (pela escravidão), que reemerge no século 21 o conceito de raça, enaltecido para justificar o colonialismo europeu na África. Com os índios e quilombolas - e paralelamente, sem conotação territorial, com o sistema de cotas nas universidades, recurso do Estado que abdicou do ensino fundamental e médio de qualidade - estamos criando distinções incoerentes com a miscigenação brasileira. Estamos inserindo um complicador na unidade nacional, já atribulada pela diversidade regional: a admissão de duas cidadanias, a cidadania brasileira e a cidadania-raça, negra ou índia, aplicada a índios e negros nascidos no Brasil, que deixam de ser simplesmente cidadãos brasileiros negros ou de etnias indígenas. A precedência entre a cidadania brasileira e a cidadania-raça, dependente do interesse conjuntural: ser índio ou o vago afrodescendente quando conveniente, ou ser brasileiro negro ou índio quando interessam os direitos da cidadania brasileira. É razoável a demarcação para índios vistos sob a perspectiva da cidadania-raça e, simultaneamente, Bolsa-Família e Pronaf para as mesmas pessoas, agora brasileiros índios?
À semelhança dos impérios do passado, não convém a um país grande e complexo a existência de critérios geradores de sentimentos raciais (ou religiosos...) indutores do solapamento da identidade nacional. Estamos "racializando" o País, criando condições potencialmente estimuladoras desse solapamento, gerando uma divisão em que, dependendo da conveniência, poderá prevalecer a pátria Brasil ou o indigenismo e a negritude. O Estado brasileiro vai acabar tendo de conciliar um "império republicano" de três cidadanias: a eurodescendente, a afrodescendente e a indígena. Em contenciosos que ponham em confronto a ideia nacional e a subnacional, qual prevalecerá? É um paradoxo procurar a união supranacional de base política e econômica (Mercosul, Unasul...) e simultaneamente facilitar a cisão subnacional de base racial!
Tolerâncias dessa natureza têm (no mundo e em todos os tempos) estimulado tensões e até secessões ou, ao menos, pretensões à autonomia singular. A adesão sem ressalvas à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (ONU) implicará risco de ser a unidade nacional tumultuada pela concepção desagregadora do nacionalismo étnico - que tumultuou a Europa na primeira metade do século 20 e ainda a perturba, talvez com o apoio da ONU e/ou de alguma versão século 21 da concepção do presidente Wilson de um século atrás, favorável à autodeterminação fundamentada no conceito da "nação" étnica e cultural.
Não será surpreendente se, algum dia, uma ONG vier a sugerir plebiscito sobre o status político-administrativo desejado por comunidade indígena travestida de "nação indígena" - já aventada, ainda que até agora sem repercussão significativa, na área Raposa-Serra do Sol -, obviamente restrito à comunidade: o "resto" do Brasil não opinaria. Plebiscito que, se pretendido para o País Basco, Tibete, Xinjiang e Curdistão, seria repelido decisivamente por Espanha, China, Turquia, Irã e Iraque.
ALMIRANTE DE ESQUADRA (REFORMADO)
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2010
(1998)
-
▼
julho
(204)
- O preço da verborragia EDITORIAL O Estado de S.Paulo
- Guerrilhas e finanças :: Cesar Maia
- Por que fogem? :: Míriam Leitão
- MAURO CHAVES E o Sergipe, ministro?
- Alvaro Uribe tem razão EDITORIAL O GLOBO
- MARIO CESAR FLORES SOMOS TODOS SIMPLESMENTE BRASIL...
- ANTONIO CORRÊA DE LACERDA Por que interromper já ...
- Nelson Motta - O coronel e os babalaôs
- MÍRIAM LEITÃO Um tanto minério
- Aumentam incertezas sobre Petrobras EDITORIAL O GLOBO
- LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS Uma nova agenda de ...
- Controle de qualidade:: Dora Kramer
- A farsa e a realidade :: Roberto Freire
- Remadores fora do ritmo Celso Ming
- A política para a Petrobras -Adriano Pires
- "Avacalhação"-Eliane Cantanhede
- É uma ameaça: tente abrir uma empresa! CARLOS ALBE...
- MÍRIAM LEITÃO O esquecido
- De pai para filho - Dora Kramer
- As apostas no câmbio - Celso Ming
- Agricultura, um modelo Alberto Tamer
- Apagão aéreo na Copa?: Josef Barat
- Miriam Leitão Refazer o erro
- Marcas famosas:Dora Kramer
- Hora da decisão : Adriano Pires e Abel Holtz
- No dia seguinte: Wilson Figueiredo
- MÍRIAM LEITÃO O mico e a pressa
- ARNALDO JABOR Nossa vida será um videogame?
- EDITORIAL - O ESTADO DE SÃO PAULO Entre o erro e a...
- AUGUSTO NUNES O maquinista do trem fantasma apita...
- Leis da alienação Dora Kramer
- Festa para poucos Celso Ming
- Aliança de Civilizações Rubens Barbosa
- Guantânamo nunca mais-Mary Zaidan
- Brasil fracassa em aspiração de ser potência mundi...
- Brasil-Irã: como fazer amigos e dar-se mal ROBERTO...
- Afirmação da democracia Moacyr Goes
- A lei vale só para os outros Paulo Brossard
- O que houve de novo com o Brasil Kátia Abreu
- O BC na campanha? Carlos Alberto Sardenberg
- Decifrar o enigma Dilma Carlos Alberto Di Franco
- SUELY CALDAS -O limite da irresponsabilidade
- Diogo Mainardi Vou embora
- JOAQUÍN MORALES SOLÁ El caso Macri aceleró el ritm...
- MARIANO GRONDONA Entre la caída y la presidencia: ...
- FHC reencontra Freyre
- Vergonha pouca é bobagem Clóvis Rossi
- Considerações quase finais, mas em tempo:: Wilson ...
- Considerações quase finais, mas em tempo:: Wilson ...
- Dora Kramer Cada um por si
- JOÃO UBALDO RIBEIRO O PROBLEMA DA AGONIA TEÓRICA
- MÍRIAM LEITÃO Misteriosa chama
- SERGIO FAUSTO MODERNIDADE ILUSÓRIA
- SERGIO FAUSTO MODERNIDADE ILUSÓRIA
- GAUDÊNCIO TORQUATO A DEMOCRACIA NO BALCÃO
- DANUZA LEÃO Nosso maior direito
- A rota que leva ao clube dos anistiados-Augusto Nunes
- Diogo Mainardi Vou embora
- Índio, Farc e PT- Ruy Fabiano
- Celso Ming-Rigor até onde?
- Arrumar a casa Miriam Leitão
- A lei não escrita ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
- Debates na TV :: Cesar Maia
- O fator Lula :: Fernando Rodrigues
- Omitir-se perante as Farc é crime:: Clóvis Rossi
- Apoios e problemas :: Marco Aurélio Nogueira
- Maria Helena Rubinato Terreno Minado
- Admirável Brasil novo Nelson Motta
- O destempero do ministro
- Ladeira abaixo Dora Kramer
- Além da privataria Celso Ming
- Do enigma de Mantega ao seguro estatal Rogério L....
- Não acabou ainda- Míriam Leitão
- MÍRIAM LEITÃO Chávez deu errado
- CLÓVIS ROSSI O risco do fiscal da esquina
- DEMÉTRIO MAGNOLI Os caçadores e o elefante
- CARLOS ALBERTO SARDENBERG Lula e Geisel, crises an...
- Expressão de vontade Dora Kramer
- A China leva vantagem Celso Ming
- Reflexão do dia – Fernando Henrique Cardoso
- Poder, arbítrio e licitação:: Rolf Kuntz
- A Copa não pode se tornar um grande Pan
- MÍRIAM LEITÃO Risco BNDES
- JOSÉ NÊUMANNE Para os amigos, sigilo; para os inim...
- O Copom decide Celso Ming
- Ilegalidade que satisfaz Dora Kramer
- Relação insestuosa Celso Ming
- Postura de Lula tensiona campanha
- MÍRIAM LEITÃO Pelo motivo certo
- O lúgubre circo de Chávez
- DORA KRAMER O fato que virou fardo
- Meu reino (e as leis) por minha sucessora-da veja
- O homem que se diz uma bomba-da Veja
- Panorama - Radar
- Finanças federais: a volta às trevas Maílson da Nó...
- Veja entrevista:O presidente do TRE do Rio
- O cadáver e o Messias -Clovis Rossi
- Suely Caldas A EBS e o IRB
- JOAQUÍN MORALES SOLÁ Tiempo de cosecha para los Ki...
- MARIANO GRONDONA El plan es vencerlos uno por uno,...
-
▼
julho
(204)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA