da Veja
“Oito anos depois de desembarcar no Rio de Janeiro, de passagem, estou indo embora. Um vagabundo empurrado pela vagabundagem. É uma sina: andar para cima e para baixo, à toa”
Fabiano, o retirante de Vidas Secas, é igual a um bicho. Graciliano Ramos compara-o a um cavalo. Ele compara-o também a um tatu, a um macaco, a um cachorro e a um pato. Se Fabiano é igual a um bicho, eu sou igual a Fabiano. Está lá, na primeira parte do romance:
“A sina [de Fabiano] era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras”.
Oito anos depois de desembarcar no Rio de Janeiro, de passagem, estou indo embora. Um vagabundo empurrado pela vagabundagem. É uma sina: andar para cima e para baixo, à toa. Sim senhor, tomei amizade à cidade. O Rio de Janeiro — e, em particular, Ipanema, que me hospedou — tornou-se para mim um verdadeiro chiqueiro das cabras.
Os quatro protagonistas de Vidas Secas — Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo — vagam silenciosamente pela caatinga, “onde avultam as ossadas e o negrume dos urubus”. Quando o menino mais velho, sedento e faminto, cai na lama rachada, tomado por uma vertigem que o impede de dar um passo a mais, Fabiano diz:
— Anda, excomungado.
Eu, minha mulher, o menino mais velho e o menino mais novo vagamos rumorosamente pelos corredores desertos do aeroporto Tom Jobim, onde avultam as ossadas e o negrume da Air France. Quando o menino mais velho, que caminha com um andador, resolve empacar, recusando-se a dar um passo a mais, eu digo, sim senhor:
— Anda, excomungado.
Fabiano tem medo de ser preso. Eu também tenho medo de ser preso. Fabiano tinha uma cadela chamada Baleia. Eu vi uma baleia, algumas semanas atrás, no mar de Ipanema. Fabiano, para matar a fome, acaba comendo seu papagaio. Eu, antes de ir embora do Rio de Janeiro, tratei de comer todas as sobras da geladeira, inclusive um ovo de Páscoa coberto de bolor.
Nas primeiras linhas de Vidas Secas, Fabiano parte, sem saber para onde. Nas últimas linhas do romance, ele parte novamente, sonhando com “uma terra desconhecida e civilizada”, onde os meninos iriam para a escola e sua mulher nunca mais teria de lamber o focinho ensanguentado de uma cadela. Depois de comparar Fabiano a um cavalo, a um tatu, a um macaco, a um cachorro e a um pato, Graciliano Ramos, nos instantes finais, apieda-se e, bisonhamente, humaniza-o. Fabiano sonha em parar de andar para cima e para baixo, à toa. O que eu digo? Eu digo:
— Anda, excomungado.
Por Diogo Mainardi
Entrevista:O Estado inteligente
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